Tuesday 15 March 2011

A primavera árabe e o clientelismo

Por Henriques Viola

Sempre que há uma crise política, econômica ou social no mundo, surgem várias vozes, muitas delas sem soluções palpáveis, apenas lançando críticas e procurando culpados. Não raras vezes, elas recorrem a teorias de conspiração e de mão-externa para justificar o fracasso das suas próprias políticas e ações.

Com o deflagrar da “primavera árabe”, que traz ventos de liberdade a povos oprimidos durante décadas por ditadores, muitas vozes vieram cantar vitórias. A hipocrisia de alguns foi tal, que até detrataram regimes que eles mesmos apoiaram no passado. Não preciso lembrar da incoerência de certos “intelectuais” que já foi suficientemente explorada no artigo “Egito e o paradoxo da democracia”, de Diogo Costa.

A importância das ideias de um intelectual não reside em estar sempre certo, mas em ser coerente no que defende. Foi isso que aprendi de um velho mestre de filosofia.

No recém terminado Fórum Social Mundial, realizado em Dakar, Senegal, políticos e intelectuais afirmavam que a queda de Hosni Mubarak, no Egito, é uma derrota de capitalismo. Ora, importa lembrar estas célebres palavras de Ludwig von Mises, em uma palestra em 1958, na Argentina:

"o sistema capitalista pode ser – e é de facto - mal usado por alguns. É certamente possível fazer coisas que não deviam ser feitas. Mas se tais coisas contam o apoio da maioria do povo, uma voz discordante terá sempre algum meio de tentar mudar as ideias de seus concidadãos. Pode tentar persuadi-los, convencê-los, mas não pode tentar constrangê-los pela força, pela força policial do governo."

Ou seja, o facto de alguns dizerem seguir políticas capitalistas, não quer dizer, necessariamente, que realmente as sigam. Os casos vindos do Magreb demonstram exatamente isso. Muitos países africanos, dizem, em parte, defender o mercado ou mesmo a protecção social, mas no terreno seguem uma prática política denominada “clientelismo”, cuja essência não se pode atribuir nem à esquerda nem à direita.

Clientelismo é uma prática política antiga e muito disseminada no mundo. É caracterizada centralmente por troca de bens e favores por apoio - político, econômico ou na tomada de decisões. Assim, no clientelismo, a população perde o controle democrático dos destinos do país. As elites locais, independentemente da sua matriz socialista ou capitalista, passam a prestar contas não aos eleitores, mas sim aos que as financiariam, sejam eles externos ou internos. Em um sistema clientelista, os mecanismos de checks and balances são quase inexistentes, a lei é dura contra os que tentam desafiar o status quo, mas leve contra os “clientes”. Nesse sistema, falar de governo limitado é anátema; o governo é tão extenso que controla quase tudo, incluindo questões que seriam da esfera individual ou privada em um sistema capitalista.

Os clientelistas não olham para a competência técnica, olham para os interesses particulares.

Em um Estado clientelista, o rule of law é quase inexistente. Aliás, é mais próximo do one-man rule. A imprensa livre é inexistente ou reduzida à insignificância; os intelectuais são divididos entre pró e antirregime. Assim, os antirregime são detratados e têm retiradas oportunidades de ganhos econômicos e sociais, chegando até a serem apelidados de antipatriotas, enquanto os pró-regime são ovacionados, bafejados de todas as oportunidades econômicas e tratados com um autêntico culto de personalidade.

Não resisto à tentação de voltar à indiscutível frase de Mises,:

"O ditador pode começar prometendo muita coisa, mas logo em seguida encarregar-se-á de desmantelar a imprensa independente para que não mais possa assinalar o fracasso das suas promessas iniciais (ibdem)."

Os regimes de Ben Ali, Mubarak, Kadafi e muitos outros políticos inscrevem-se claramente na lógica clientelista, não podendo por isso atribuir as suas falhas ao capitalismo ou mesmo ao socialismo. Todavia, o capitalismo e a democracia liberal, não sendo perfeitos (o que, na minha ótica, não existe), são o melhor sistema, pois permitem que os cidadãos, de forma individual ou coletiva, possam contestar as decisões abusivas dos ditadores. A separação dos poderes executivo, legislativo e judicial permitem melhorar os mecanismos de checks and balances, prestação de contas e rule of law. A liberdade econômica, sendo um pilar central do capitalismo, abre caminho para que qualquer indivíduo ascenda economicamente, sem interferências indevidas ou corruptas dos representantes do estado.

Portanto, numa leitura simples, podemos concluir que nenhum regime ora em questão era capitalista, muito pelo contrário, eram regimes clientelistas e predadores dos seus próprios povos.

Os regimes ora em desespero no Magreb são apenas a ponta do iceberg desta grande rocha clientelista. A rocha via-se tão forte que se achava independente do líquido que a banhava. Entretanto, bastou (basta) uma simples luz de liberdade trazida pelas redes sociais para quebrar rochas que se achavam inquebrantáveis, qual o sol de verão quebrando poderosos icebergs do Ártico, abrindo voluptuosos vales e correntes de liberdade.

Chegarão essas correntes mais ao sul do Saara? Cá estaremos para testemunhar e viver, porque, certamente, não faltam candidatos à queda!

In: OrdemLivre.Org

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