Autópsia: um direito das elites?
SR. DIRECTOR!
A medicina legal é a especialidade que, servindo-se dos conhecimentos tecnico-científições das ciências que subsidiam a medicina, presta esclarecimento e detalhes para uma actuação eficiente da Justiça e a sua prática efectiva-se através da perícia médica.
Maputo, Sexta-Feira, 10 de Outubro de 2008:: Notícias
Vamo-nos cingir neste pequeno ensaio à actuação da perícia médica, nos casos das autópsias.
A autópsia é conhecida como o exame médico de um cadáver com o fim de determinar as causas da morte.
Impõe-se na nossa legislação que qualquer morte por ferimentos e se houver suspeitas de que a morte não foi natural deve o cadáver ser submetido à perícia médico-legal, de modo a se conhecerem as causas reais da morte e estabelecer daí um nexo causal entre a actuação de um indivíduo e o resultado morte que se tenha verificado, onde se responde fundamentalmente se a morte resultou ou não do ferimento ou ferimentos encontrados; se tais ferimentos foram causa ocasional e acidental; com que instrumento denotam haver sido feitos e, por ventura, com que intenção.
Infelizmente, este direito no nosso país é exclusivo às elites pois só estas podem pagar e com algum desembaraço o valor que se requer que ronda os 1200,00MT, para além de que o cidadão comum, mesmo que pague os valores em causa, a autópsia nunca é feita com a celeridade desejável.
Contudo, assiste-se um excesso de eficiência por parte dos médicos legistas quando se trate de alguém da elite que morre e, é como dizia um magistrado judicial frustrado por esta forma de agir daqueles profissionais, que “quando alguém da elite morre, os serviços da perícia médico-legal são eficientes, contudo, quando se trata do cidadão comum a coisa é completamente outra”. E rematava o mesmo em tom de desabafo: “a medicina legal moçambicana não está ao serviço da comunidade, mas, sim, das elites”.
É de facto difícil para o cidadão que (sobre)vive do salário mínimo ter que desembolsar a quantia que se pretende nos serviços de medicina legal e este facto sucede num momento de dor, onde para além das despesas da perícia impõem-se outras e mais prementes, como o enterro. E porque o cidadão desconhece o valor jurídico de uma perícia, por não efectuá-la, dando primazia e como é óbvio ao enterro. Contudo, a mesma é fundamental pois é esta, por exemplo, num caso de enforcamento, estrangulamento, afogamento, esfaqueamento, que vai aferir se estas foram as causas directas e necessárias da morte, pois vezes há em que cidadãos são mortos e depois jogados no mar para dar a falsa ideia de afogamento, ou então, morto por asfixia e depois colocado numa posição de enforcamento, portanto, seria a autópsia a luz para o magistrado produzir uma sentença mais perto da verdade, pois o direito veda as suposições em nome da certeza e segurança jurídicas.
Assim o faz para evitar arbitrariedades, pois, como acima elucidámos, pode suceder que um certo cidadão, de nome Matlombe, esfaqueie o outro de nome Macuácua, por exemplo, e desse esfaqueamento se produza a morte.
Ora, o direito veda a presunção de que o esfaqueamento que o Matlombe sofreu foi causa necessária e directa da sua morte, sem que se faça a devida autópsia pois o Matlombe podia sofrer de alguma enfermidade, como por exemplo a anemia e qualquer ferimento que este tivesse, mesmo que sem gravidade seria suficiente para o deixar sem sangue e consequentemente, produzisse como resultado a morte. Pode também suceder que o Macuácua tenha morrido como resultado da perda de sangue na demora que teve em ser levado ao hospital, facto que podia se evitar se prontamente presente ao médico.
Pode também acontecer que o Matlombe tenha sido esfaqueado num lugar não-vital, portanto, incapaz de produzir o resultado morte, mas que, por alguma infecção pós- esfaqueamento, o resultado seja o de morte. Pode acontecer que o mesmo tenha morrido por imperícia médica no seu tratamento, portanto, estou aqui a levantar um sem número de hipóteses para demonstrar a importância prática da autópsia.~
O que sucede na prática é que os processos são levados à discussão de julgamento sem se juntar o necessário relatório da autópsia porque não realizado por falta de quantia monetária que se pede. O normal em processos em que ocorre este fenómeno é que o Ministério Público, como titular da acção penal, não deveria acusar o agente do crime de homicídio, mas sim de ofensas corporais qualificadas.
Infelizmente, muitos processos são julgados e cidadãos são condenados sem que se tenha juntado o relatório da autópsia, porque não foi realizado, colocando logicamente zonas de penumbra na sentença a ditar. O que sucede é o que o juiz nunca deixa de condenar mesmo que faltando este relatório, mas aí questiona-se de facto a justeza da sua decisão. Pode também acontecer que o juiz condene por facto diverso, neste caso, ofensas corporais no lugar de homicídio, penalizando-se assim o pobre cidadão comum porque lhe faltou 1.200,00MT para se efectuar a autópsia e questiona-se uma vez mais a justeza da decisão que daí possa advir.
Fica assim clara a importância da realização e anexção da peça de autópsia o processo pois esta é determinante para se aferir da causa directa e necessária da morte e a sua inexistência, vedada simplesmente, pela falta de valores monetários, não é mais que a denegação da justiça ao cidadão, é uma afronta ao princípio da legalidade das penas e da verdade material.
Na verdade, o acesso à justiça é um imperativo constitucional e, por isso mesmo deve ser salvaguardado. A sua violação põe em causa o valor fundamental da justiça.
A não-realização da autópsia por falta de dinheiro mostra que o acesso à justiça para todo o cidadão não passa de um chavão político porque o acesso deve ser complementado e ajustado por todos os serviços, porque de nada vale o cidadão ter o direito de submeter a queixa ao Tribunal para depois não conseguir efectuar todas as diligências de prova que o processo necessita.
Com o relatório da autópsia, mesmo os defensores nomeados oficiosos que se sabe passam a vida a pedir justiça, podem ser dispensáveis pois os factos e a prova produzida falam por si.
O mais grave a caricato em todo este processo é que mesmo intimados pelo tribunal para efectuarem o exame pericial, quando falta o dinheiro, a ordem é simplesmente ignorada, mesmo que se saiba que o não-cumprimento acarreta o crime de desobediência, mas aqueles estão cientes de que nada lhes acontecerá, sendo que o cidadão comum é quem paga a maior factura.
Ora, se estes dependem para a sua sobrevivência das receitas que cobram dos serviços de autópsias, e acredito que não, que se articulem mecanismos que não possam penalizar o cidadão comum, como, por exemplo, o patrocínio destes serviços por parte do Estado porque de outra forma há uma clara denegação de direito de acesso à justiça, o que viola o preceito constitucional acima referenciado, o que não se pode aceitar num Estado que se diz de direito como o nosso.
Uma medicina legal ao serviço do povo pretende-se e as elites até podem continuar a ter o tratamento VIP que lhes é reservado, mas que isso não seja em prejuízo do povo, porque de outra forma, concluir-se-á que a autópsia é de facto um direito das elites.
AMOSSE MACAMO
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