ELISIO MACAMO
O 'Noticias' de hoje publica um texto interessante do sociologo mocambicano Elisio Macamo. Pela importancia do mesmo e com a devida venia publicamo-lo na integra, pois ajuda-nos se nao a perceber, pelo menos a pensar o nosso 'modus vivendi' :
A face visível das manifestações. As manifestações e os desafios que nos colocam
TERÇA-FEIRA, dia 5 de Fevereiro, é capaz de entrar na história do país como o dia em que deitamos tudo por água abaixo. Não foi o dia da revolta popular; não foi o dia em que o povo perdeu a paciência; não foi o dia em que o povo disse “basta!”. Não, não será por essa via e com essa justificação que o dia vai entrar na história. Se a Frelimo alguma vez deixasse. O dia 5 de Fevereiro é capaz de entrar na história como o dia em que a classe política, os intelectuais e académicos, mas também o povo – ah, o povo! – revelaram a extrema vulnerabilidade do país. Com efeito, a situação é muito mais grave do que eu pelo menos supunha. O país baloiça na ponta de um fio de seda, documentando desse modo a afinidade que une os países africanos – desde o Quénia até ao Chade, passando pelo Ruanda e Burundi. É caso para dizer: avante, camaradas, temos que recuar!Maputo, Quarta-Feira, 13 de Fevereiro de 2008:: Notícias
O que é que aconteceu nesse dia? É difícil dizer com exactidão. Muitos não vêem esta dificuldade porque os factos parecem falar mais alto do que o interesse que cada um de nós tem em produzir versões politicamente aceitáveis do sucedido. Jovens e populares fizeram-se à rua para protestarem contra a subida do preço de transportes. Foi isso mesmo que sucedeu? Ou jovens desordeiros foram à rua destruir a ordem pública? Ou foram pessoas sem sentido cívico que se fizeram à rua para manifestar o seu desacordo em relação ao aumento do custo de vida documentado pela subida do preço do “chapa” e do preço do pão? Ou foram cidadãos normalmente pacatos que, fartos das falcatruas dos governantes, resolveram mostrar ao governo que com o povo não se brinca? O que é que realmente aconteceu nessa terça-feira? Distúrbios? Protesto? Exercício democrático?
Sei que muita gente, quer no interior da classe política, quer no interior da classe intelectual, não gosta de perguntas, sobretudo deste género de perguntas. Vivemos num país curioso pelo facto de se caracterizar por um número enorme de incertezas na vida individual dos moçambicanos, incertezas essas, porém, que não impedem nenhum de nós de partir do princípio de que tudo é certeza. Assim, a hostilidade às perguntas, sobretudo a este género de perguntas, resultaria do efeito nefasto que elas teriam nas certezas às quais nos agarramos firmemente para não nos afogarmos nas incertezas. E, lembrem-se, estamos a falar de um país que baloiça na ponta de um fio de seda. Esse mesmo país oferece-nos certezas, pensamos. Distúrbios, protesto, exercício democrático, ponto final.
Aqui entramos num terreno difícil com duas vertentes. A primeira é simples. Explicar não é justificar, esta máxima é tão velha quanto os problemas que nos afectam no nosso quotidiano. Notei, a partir da leitura de artigos de imprensa, cartas de leitores, comentários em blogues na internet, conversas com amigos, cartas abertas ao Presidente da República, etc., que algumas pessoas se regozijam pelo que aconteceu. Deu-se uma lição ao governo! O governo está a pagar por todas! Bem feito! Agora é que o governo vai ouvir! E como se o governo estivesse a mostrar que está de acordo com estas interpretações, recuou, deu um passo atrás, cedeu, finalmente deu ouvidos ao povo! Diz-se. Explicar não é justificar, mas justificar também não é explicar. Então, o que estamos a fazer quando dizemos que no dia 5 de Fevereiro o povo saiu à rua para protestar contra as injustiças deste governo? Estamos a relatar o que aconteceu? Estamos a explicar o que aconteceu? Ou estamos a justificar o que aconteceu? E, acima de tudo, como é possível uma explicação ou uma justificação sem o relato da própria coisa?
A segunda é complicada. O que foi adiado, não está resolvido. O governo vai subsidiar os “chapa”, muito bem. Mas com que dinheiro? Até quando? E se o povo se fizer à rua também contra o preço do pão? Contra o HIV/SIDA? Contra o frango brasileiro? Contra os parceiros da cooperação? Contra as derrotas dos Mambas? Contra as cheias? Enfim, contra tudo quanto não percebe, mas para o qual precisa de responsabilizar o governo? E aí? O governo vai recuar, dar um passo atrás, ceder e finalmente dar ouvidos ao povo? Adiar uma coisa não é resolver essa coisa, mas também resolver uma coisa não é atacar o problema que criou essa coisa. Então, o que pensa o governo estar a fazer quando reage às manifestações populares com concessões? Está a acalmar os ânimos adiando estrategicamente a solução ou está a criar expectativas evitando reagir ao problema? E que problema? O problema dos ânimos ou o problema na base da manifestação popular?
Os pneus foram o símbolo da fúria (C. BERNARDO)O PROBLEMA
Maputo, Quarta-Feira, 13 de Fevereiro de 2008:: Notícias
Em tempos publiquei neste jornal um texto a comentar um livro de Kumba Yalá com o título pomposo de “pensamentos filosóficos”. Nesse texto escrevia que o povo nunca se engana, mesmo quando está enganado. Escrevi esse texto a pensar – e disse-o também – no exercício do poder político entre nós. Dizia que exercer poder político é uma grande responsabilidade, pois consistia essencialmente em nunca dar ao povo a oportunidade de fazer más escolhas que, naturalmente, nunca constituiriam engano, pois o povo nunca se engana. Na terça-feira fatídica o povo, ou uma parte desse povo, saiu à rua para responder afirmativamente às oportunidades que a nossa classe política e a nossa classe intelectual têm estado pacientemente a criar pela sua recusa persistente em pensar seriamente a relação entre o Estado e a sociedade. Ou por outra, o que aconteceu naquele dia na cidade de Maputo não foi o protesto ou a revolta do povo contra a indiferença e os ouvidos a mercador do governo. Foi algo mais grave ainda. Os manifestantes foram à rua mostrar, por um lado, que o nosso sistema político dança na corda bamba ao alimentar falsas expectativas em relação ao que o Estado pode fazer pelos cidadãos, mas por outro lado mostrar também que este sistema político não tem espaço para a articulação sensata e construtiva de desacordo.
Isto é o que me parece ter acontecido no dia 5 de Fevereiro, dois dias após o aniversário da morte de Eduardo Mondlane, o tal que lutou por Moçambique. Ninguém sabe exactamente por que Moçambique Mondlane lutou e morreu, mas seja qual for a ideia que o motivou, o que aconteceu dois dias após a celebração de mais um aniversário da sua morte parece ter mostrado que essa luta ainda continua. Como diz, e bem, um manifesto da sociedade civil moçambicana em preparação do Fórum Social, “outro Moçambique é possível”. Mas a pergunta persiste: que Moçambique? E, sobretudo, o que torna outro Moçambique possível? Será que a identificação disso nos pode ajudar a ver o problema da terça-feira e, por via disso, esclarecermos sem justificarmos e resolvermos sem adiarmos? Eu acho que sim, mas para esse efeito a classe intelectual podia resistir um bocado à tentação de dizer “dissemos, não dissemos?” e o governo também devia reprimir o seu próprio desejo de esperar por uma boa oportunidade para descarregar a sua fúria sobre os “desordeiros”. A oposição pode continuar a tentar ganhar pontos, é sua tarefa.
Temos, portanto, que olhar para duas coisas em ligação com as manifestações populares. A primeira coisa é a relação entre o Estado e a sociedade. Há muito que predomina no nosso imaginário político a ideia de que o Estado, através do governo, ou vice-versa, está aqui para resolver os problemas do povo. Assim mesmo: resolver os problemas do povo. No período colonial, o Estado de facto tentou resolver os problemas do povo limitando a sua definição de povo e deixando uma boa parte desse povo fora do âmbito da sua definição. Foi por isso que esses que ficaram de fora se revoltaram. Depois veio o período revolucionário bem carregado com uma hipoteca pesada fruto do discurso que legitimou a luta armada de libertação nacional, mas também resultado directo do direito que os fazedores da revolução se arrogaram de tornar o povo feliz. Aqui também o povo se revoltou não só pela instrumentalização externa de alguns elementos como também pelo cinismo com que as pessoas passaram a lidar com os esquemas para nos obrigarem a sermos felizes, curto, o deixa-andar daquele tempo. Ultimamente estamos a braços com uma agenda política cada vez mais fortemente determinada de fora que torna o povo cada vez mais invisível e uma ténue referência dificilmente capturada pela ideia de que vive em pobreza que precisa de ser combatida. Curiosamente, num momento em que factores externos – os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio constituem para mim um dos maiores perigos à estabilidade dos nossos países nas condições actuais de auxílio ao desenvolvimento – intensificam cada vez mais a ideia de que o governo é que resolve os problemas do povo, eles, simultaneamente, vão minando a capacidade desse governo – ou Estado – de corresponder às expectativas que vão nascendo e se multiplicando.
Rescrevi, no último parágrafo, a história de Moçambique em “fast-forward”. E isso era para dizer que temos um problema sério do lado do povo, mas também do lado dos governantes. O povo está na expectativa; o governo não se farta de alimentar essa expectativa. O resultado é previsível: Subiu o preço do trigo e os padeiros têm que aumentar o preço do pão? O governo que encontre solução para isso! Subiu o preço do combustível e os transportadores têm que aumentar o preço dos transportes públicos? O governo que encontre a solução para isso! E o governo, ele, o que faz? Encoraja, pela sua aparente falta de imaginação na abordagem estrutural destes problemas que uma vida moderna nos vai criando, a ideia de que, de facto, ele é que é a solução. Nunca cheguei a perceber porque a frota dos TPM é problema do Ministro dos Transportes. Que seja problema do município de Maputo, tudo bem. Mas do Ministro dos Transportes? Não é que a questão do transporte não deva ser objecto da atenção do governo. Claro que deve ser, mas a questão é de saber a que nível. E este nível não está claro, nem para o governo, nem para o povo. É só ver que para os hospitais funcionarem o Ministro da saúde tem que andar a fazer rusgas. E ainda nos admiramos quando as pessoas vão à rua protestar a subida de preços de combustível contra o governo? Ainda nos admiramos quando as pessoas não agem como consumidores e procurem usar a sua força como tal para forçar os transportadores a gerirem melhor as convulsões normais do mercado? Ainda abanamos a cabeça quando as pessoas não pensam em alterar os seus hábitos de movimentação de acordo com a situação?
A segunda coisa para a qual temos que olhar não tem raízes históricas entre nós, mas faz parte de uma das tarefas mais inadiáveis que se apresentam ao nosso sistema político: a participação política. Num outro país com um sistema político mais maduro e estável ninguém iria à rua reclamar a subida do preço do pão ou do combustível. Só entre nós é que acontecem coisas dessa natureza. Estilo Zâmbia, onde regularmente há tumultos por causa do preço do milho. Noutros países com um sistema político mais maduro e estável as pessoas vão à rua protestar contra a política agrária ou de segurança alimentar do governo quando o preço do pão sobe; vão à rua protestar contra a política de transportes e de emprego do governo quando o preço do combustível sobe. E vão organizados em sindicatos, associações disto mais daquilo. E a oposição? A oposição não escreve cartas abertas ao Presidente da República a exigir que resolva os problemas do povo. A oposição, num país com um sistema político mais maduro e estável, aponta os erros da política agrária e de transportes do governo e diz que política colocaria no seu lugar.
Mas, lá está, o povo não se engana num sistema democrático. O povo reconhece simplesmente as oportunidades que os políticos criam. A oposição, por sua vez, faz o que a oposição deve fazer: desferir golpes ao inimigo fragilizado. Em política, ao contrário do boxe, pode se bater num adversário que está no chão. A questão, portanto, seria de saber como devemos fazer política em Moçambique para que haja espaço de articulação de protesto de forma construtiva e sensata. Um e outro ainda vão fazer recurso à violência, vão identificar mal o inimigo, etc., mas a esmagadora maioria pode ficar aliada da classe política na defesa da ordem republicana. É sintomático, por exemplo, que o protesto tenha, na linguagem metafórica dos gloriosos tempos, saltado estruturas da base directamente para a nação. Ninguém está a falar da responsabilidade do município ou do governo de Maputo, nada. É o governo central que tem que reagir. Nenhum deputado foi porta-voz das preocupações populares, nada disso. Nenhuma organização da sociedade civil foi usada para canalizar as preocupações populares, nada mesmo. Foi o povo e a nação, tudo directamente. E isto está mal, creio.
A polícia tentou controlar os revoltosos, mas acabou revelando a sua impotênciaA SOLUÇÃO?
Maputo, Quarta-Feira, 13 de Fevereiro de 2008:: Notícias
Há solução? Solução para que problema? Para o problema da manifestação? É problema? A manifestação de 5 de Fevereiro foi problema? Foi a manifestação que foi problema ou a ausência de outras formas de articulação de protesto é que constitui problema no nosso sistema político? Existe um quadro substancial de referência que sustente a discussão política ou dependemos todos da vaga e perniciosa ideia de que o governo resolve os problemas do povo? Existe espaço – o governo cria espaço? – para que cada um de nós assuma a responsabilidade pela sua sorte e saiba como interpelar a classe política para que lhe crie essas oportunidades tão necessárias à condução de uma vida responsável? Existem mecanismos políticos suficientemente robustos que dêem ao povo o poder de disciplinar o governo que se desleixe nessa tarefa sem, contudo, colocar em perigo a viabilidade de todo o sistema político? Há gente nas hostes políticas e nas hostes académicas a reflectir sobre esse tipo de questões? Ou o oportunismo se enraizou assim tanto entre nós que preferimos cada vez mais o conforto de hoje em troca da consciência de problemas futuros, problemas que vão ultrapassar qualquer um de nós quando as coisas começarem realmente a aquecer? Ou o hábito das explicações que justificam, mas não esclarecem, ocupou tanto as nossas mentes que o único que conta é dizermos, triunfalmente, que tínhamos razão quando gritávamos, uma vez mais, que o governo está contra os pobres e que um dia o povo vai se revoltar? Que mecanismo genético é este que atrai os homens da nossa terra às vitórias pírricas e ao regozijo quando o país se afunda?
Que fazer? Pensar, pensar a sério. O campo político precisa de se tornar mais transparente e aqui não me refiro ao fim da corrupção. Refiro-me à criação de um quadro de discussão política que envolva o cidadão na resolução dos seus próprios problemas e na transformação da máquina estatal no instrumento que cria as condições para que cada indivíduo ganhe a sua liberdade mesmo ao estilo de Amartya Sen, o Prémio Nobel de Economia, na sua ideia de que desenvolvimento é liberdade. Isso mesmo. O indivíduo precisa de gozar da liberdade de interferência e obstrução por parte de seja quem for e poder contar com um Estado que pelo menos protege essa liberdade. Só depois de garantida essa liberdade negativa é que o cidadão pode começar a exigir uma liberdade mais positiva que lhe permita formular e executar seus próprios planos. Isso pressupõe uma maior autonomia ao nível local. O município de Maputo, por exemplo, é demasiado grande, nunca poderá ter a capacidade de responder às exigências que essa urbe-monstro lhe coloca. A urbe tem que ser repartida em unidades mais pequenas, onde instituições mais perto das pessoas vão fazer, coisas básicas que incluem coordenar, por iniciativa dos moradores, tarefas elementares como garantir a limpeza, gerir escolas, controlar o crime, proporcionar ocupação aos jovens, atrair investimentos, projectos e infra-estruturas e, porque não, entreter sociólogos que vierem saber da sua vida. Precisamos de um maior associativismo que não se coordene via sms, mas sim em condições de comunicação humana em presença e aberta. Precisamos de descer do pedestal das grandes soluções para o fundamento das pequenas coisas da vida.
Os desafios que o nosso país nos coloca não são segredo para quem presta atenção ao que outros andam a dizer por aí. Nunca a fórmula “small is beautiful” fez mais sentido do que agora. James C. Scott, um cientista político americano, produziu uma lista de princípios que me parecem essenciais para este momento num livro de 1998 com o título “Seeing Like a State”. Foram quatro: (1) dar sempre passos pequenos para podermos fazer compasso de espera para vermos que passo dar a seguir; (2) preferir o que pode ser revertido para podermos corrigir erros sem causar grandes comoções; (3) contar com surpresas, isto é fazer planos que tenham espaço para o que é difícil de prever; finalmente, (4) ter sempre em mente a criatividade das pessoas, pois entre o que nós planeamos e o que as pessoas fazem disso há sempre uma grande distância. É uma lista que não é directamente relevante para as manifestações, mas, ao mesmo tempo, de alguma maneira é. Nós somos provavelmente vítimas dos nossos assomos de grandeza. O povo pensa que é grande e que vive num país diferente do país real em que vive; o governo “sabe” que é grande e movimenta-se pelo mundo em nome de um país mais pequeno do que imagina; os intelectuais, esses, sobretudo os que pensam que falam em nome do povo, julgam que podem prescindir da reflexão quando as coisas aquecem para simplesmente tirarem conclusões: portanto, portanto, portanto. Parece o “porque eu, porque eu...” do Ta Basilly.
Estamos a recuar a passos gigantescos.
ELÍSIO MACAMO - Sociólogo/Nosso colaborador
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