Friday, 20 June 2014

Nos nao fomos libertados, fomos aprisionados! Professor Justino Pinto de Andrade

Angola
"Nós angolanos não fomos libertados, fomos aprisionados," diz Justino
Pinto de Andrade

Em entrevista à DW África, Justino Pinto de Andade faz um balanço da
independência de Angola, dos sonhos na luta pela libertação e dos 40
anos do 25 de abril. Também relembra a vida na prisão do Tarrafal, em
Cabo Verde.
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A Revolução dos Cravos pôs fim à ditadura em Portugal. Também para as
colônias, o 25 de Abril de 1974 criou o caminho para a liberdade. Para
Angola, foi a pólvora inicial de uma guerra civil, que duraria 30
anos.

À frente da Luta de Libertação estava Justino Pinto de Andrade, na
época um estudante de medicina que trocou a universidade pela
ideologia de viver numa nação independente. Depois de passar oito anos
preso e ter vivido por dois anos como deportado político, ele é
atualmente presidente do Bloco Democrático, partido na oposição, e
professor da Universidade Católica de Angola.

Nesta entrevista concedida à DW África em Luanda, Justino Pinto de
Andrade revela como deixou a universidade para se tornar um
revolucionário, seus sonhos na juventude e o que pensa de seu país
atualmente.

DW África: Onde estava no dia 25 de Abril de 1974?

Justino Pinto de Andrade: Eu estava em Cabo Verde como preso político.
E já estava preso há cerca de cinco anos na cadeia do Tarrafal. Tomei
conhecimento do 25 de Abril não propriamente no 25 de abril, mas uma
semana depois. Durante aquela semana, fez-se completo silêncio sobre o
que se estava a passar em Portugal. Foi apenas no dia 1 de maio que
nós, os presos do Tarrafal, fomos avisados que tinha havido um golpe
de Estado em Portugal, que ficou conhecido como a "Revolução dos
Cravos". Foi neste dia também que nós saímos da cadeia.

DW África: Ainda se lembra do dia em que recebeu esta notícia, de que
um golpe de Estado havia trocado o poder em Portugal?

JPA: Era a primeira vez, naqueles anos todos, que nós ouvíamos o
barulho, as vozes da população do lado de fora do campo [do Tarrafal].
Nomeadamente: Viva a independência! Viva Angola! Viva Guiné! Viva Cabo
Verde! Viva FRELIMO! Viva PAIGC! Viva MPLA! Então, percebemos que
alguma coisa teria acontecido relativamente a nós.
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Justino Pinto de Andrade cumpria pena na prisão do Tarrafal (foto), em
Cabo Verde, quando soube da troca de poder em Portugal no dia 25 de
abril de 1974

DW África: A informação sobre a troca de poder foi dada pelo diretor
do Tarrafal. Ainda se lembra do que ele disse?

JPA: Disse-nos que tinha havido uma mudança de Governo. "O professor
Marcelo Caetano abdicou do cargo de presidente do Conselho de
Ministros," palavras dele, "e então uma junta militar assumiu o poder
em Portugal." Perguntei ao diretor do campo: "Foi uma passagem entre
amigos, ou foi, como geralmente chamamos, golpe de Estado?" E então, a
expressão que o diretor do campo usou foi: "Não, não, não, não. Golpe
de Estado, não! Golpe de Estado, isso é em África!"

DW África: Conte-nos sobre como Justino Pinto de Andrade, na época um
estudante de medicina, foi preso em Luanda e depois levado para a
prisão do Tarrafal, em Cabo Verde!

JPA: Nós pertencíamos a um grupo clandestino. Chamávamos o Comité
Regional de Luanda - CRL - do MPLA [Movimento Popular de Libertação de
Angola], e nós éramos os líderes desse comité regional. Fomos presos
pela PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], ao fim de
diversos atos de perseguição pela polícia política portuguesa. Eu fui
condenado a oito anos de cadeia, com hipótese de prorrogação do prazo
sob a forma de medidas de segurança. Fiquei cerca de cinco anos preso.
Eu tinha 21 anos quando fui preso e tinha 22 anos quando fui para o
Tarrafal.

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Vídeo da entrevista com Justino Pinto de Andrade (Flash)

DW África: Ouvi dizer que para se comunicarem, os presos criaram uma
rádio dentro da prisão do Tarrafal. Como funcionava a troca
clandestina de notícias?

JPA: Havia um buraco no banheiro. E era neste buraco que colocávamos a
nossa correspondência e onde íamos recolher a correspondência deixada
pelos outros companheiros. Era assim que nós nos informávamos sobre
quem estava nas outras casernas, há quanto tempo estava, quantos anos
tinha apanhado de cadeia, a que família pertencia, em que região de
Angola tinha nascido. Portanto, essa correspondência permitia-nos nos
conhecermos sem, contudo, termos uma relação pessoal e direta.

DW África: O que lhe marcou na vida do dia-a-dia na prisão do Tarrafal?

JPA: Eu, um jovem de 22 ou 23 anos, estudante universitário, filho de
uma família considerada e respeitada, a ver aqueles homens de origem
humilde, camponeses, homens que foram presos nas zonas rurais, que
viram as suas aldeias serem incendiadas, eles contávam-me isso.
Recordo-me deles sempre com muito carinho, com muita saudade. É a
imagem mais simbólica que tenho é dos meus companheiros, que não iriam
usufruir nada com a independência porque eles eram homens poucos,
homens simples. Quando procuro saber o que era feito deles, e saber
que o Fulano morreu assim, o Ciclano morreu assado e morreram todos
assim, violentamente. Para mim é a imagem mais triste.
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Avião do tipo Fiat G-91/R4 usado pela Força Aérea portuguesa na guerra
colonial em Angola (imagem tirada no Museu do Ar em Sintra, Portugal)

DW África: Na sua opinião, o que a Revolução dos Cravos significou para Angola?

JPA: A ideia que nós tínhamos, era de que a luta [de libertação]
estava a desenvolver-se. Afinal, não era assim. Pelos vistos, os
Movimentos de Libertação viviam momentos difíceis aqui em Angola
durante a luta e o 25 de Abril permitiu uma viragem que depois
conduziu à independência. É evidente que eu, durante aqueles anos, à
medida em que os anos foram passando, fui percebendo que as coisas
estavam difíceis. Tínhamos a ideia de que os companheiros continuavam
a progredir no terreno, que a tropa portuguesa estava numa situação
difícil e, depois, quando venho [para Angola], e começo a ouvir as
pessoas falarem e a ler a informação que me é dada, digo, afinal nós
estávamos numa situação difícil. Portanto, eu saísse de lá da cadeia
com muitos anos de idade e não com 26 [anos] como saí.

DW África: Sr. Justino Pinto de Andrade, como avalia o seu próprio
papel na luta de libertação em Angola?

JPA: O papel típico de um jovem naquela época que ambicionava não ser
colonizado e, por isso mesmo, sentia a obrigação de contribuir para o
derrube do regime colonial. Eu, pessoalmente, não me sentia em
condições de continuar a viver na condição de colonizado. Eu achava
que a condição de colonizado, para além de tudo, também era
humilhante. Por isso mesmo, decidi envolver-me de forma séria no
processo da luta de libertação nacional.

DW África: E hoje, quase 40 anos depois da independência, como olha
para o seu país?

JPA: Olho com um misto de alegria, por um lado, porque fomos
independentes. Por outro lado, com um misto de tristeza, porque não
foi isso que nós pensamos que iria acontecer. Embora deva dizer que,
quando estava na cadeia e convivia com presos angolanos provenientes
de várias origens, percebi que o processo pós-independência iria ser
complicado, que iríamos ter conflitos entre nós.
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Exposição em Berlim sobre a solidariedade entre a República
Democrática da Alemanha (RDA) e Angola (foto de 1977). Justino Pinto
de Andrade acha que depois da independência de Angola, faltou um
desenvolvimento para todos. "Afinal, muitos dos nossos companheiros
queriam apenas a independência," critica.

DW África: O que tinha sonhado para Angola que não vê acontecer no seu país?

JPA: Eu pensava num país que iria aproveitar todo o seu potencial
material e humano, que iria desenvolver processos de solidariedade que
permitisse um desenvolvimento para todos, mais equilibrado, mais
abrangente. Hoje, sinto que, afinal, muitos dos nossos companheiros
queriam apenas a independência. De tal maneira que quando viemos para
Angola, o que aconteceu foi que nos matamos uns aos outros. Eu sou um
sobrevivente, porque grande parte dos meus companheiros morreu.

DW África: Então se os ideais não se cumpriram, o que a independência
trouxe para Angola?

JPA: Teoricamente trouxe o poder para os angolanos e isso já é uma boa
conquista. Mas nós sentimos que este poder não foi bem usado, porque
afinal temos angolanos que oprimem outros angolanos e de forma, às
vezes, até mais violenta do que aquela que era feita pelos
portugueses. A violência que eu assisti na cadeia pós-independência em
nada se compara com aquilo que eu assisti no período colonial. E isso
para mim é muito chocante. Sobretudo porque eu vi companheiros meus da
luta de libertação a irem ser fuzilados e eles não mereciam ser
fuzilados.

DW África: Na sua opinião, qual significado tem o fato de Angola ter
sido a última colônia a se tornar independente?

JPA: O colonialismo português tinha um engajamento económico, social e
também político maior do que aquele que tinha nas outras colónias
portuguesas dada a extensão de Angola, dada também a riqueza potencial
que Angola possuía. E isso fazia com que os portugueses não aceitassem
entregar de mão beijada a sua jóia da coroa. Por outro lado também,
deveu-se ao fato de o processo da luta de libertação em Angola ter
sido um processo mais complexo e o poder colonial teria que dialogar,
negociar com os diversos interlocutores que se apresentavam no
terreno.

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Ouvir a entrevista a Justino Pinto de Andrade

DW África: Em que medida a luta pela independência é instrumentalizada
e usada para legitimar o poder de grupos e pessoas específicas em
Angola?

JPA: Não têm outra forma de legitimar o poder. O único argumento que
têm para legitimar o poder que têm é ter lutado pela independência. O
processo de luta pela independência, no fundo, transformou os
angolanos em prisioneiros deste poder. Nós não fomos libertados, fomos
aprisionados. Aqueles que ganharam utilizam o país como se fosse uma
conquista de guerra, um troféu. Sinto que há aqui uma pessoalização do
poder. Uma pessoalização que depois querem transferir para os seus
descendentes, ficando sempre no mesmo círculo.

DW África: Diante de todos os esforços que fez pela independência,
seus ideias, sua luta, as dificuldades que enfrentou, valeu a pena?

JPA: Só o fato de nunca me sentir bem na condição de colonizado faz-me
assumir como tendo valido a pena deixar de ser colonizado. Mas não me
sinto bem como escravo de um poder totalitário como esse. Penso que
nós merecíamos melhor. Eles portam-se selvaticamente contra as
pessoas. Usam os órgãos de defesa e segurança sem qualquer limite e
penso que este é o grande mal do pós-independência.

DW África: Ficou alguma ferida aberta?

JPA: Não é um ferida aberta verdadeiramente. É algum desencanto.
Sobretudo, no fundo, o que me custa é saber que perdi, durante a luta,
amigos e companheiros que sonharam como eu sonhei com um país melhor,
deram a sua vida para nos libertarmos e hoje temos quem aprisionou o
país.


Saudações

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