CARTA A QUELIMANE
Quelimane, meu amor.
Assim, por meio em tantas coisas às quais a minha vida se liga a ti, por dentro do cheiro que me corres nas paredes venais do meu corpo, por seres-me, ainda, o meu primeiro chão, o meu primeiro Sol, o meu primeiro ar e, também, o primeiríssimo sopro de vida desde que me conto entre os homens, escr evo-te.
Escrevo-te visceral e consanguíneo a tudo o que me és, ao que antes escreveste em mim, ao que sinto ainda escreveres-me e, sobretudo, ao que nunca de forma alguma poderei ou saberei escrever-te igual à força, ao estremecimento, ao tão pleno e intenso que é o sentimento que acordas no escuro que sou quando me és próxima, táctil e profunda, e doce , aveludada e líquida como só tu o sabes ser.
Esta carta pequena é para beijar-te a delicadeza, para dizer-te que te AMO e para agradecer-te do mais verdadeiro do que me sinto como espírito e, disso, como luz, a ternura com que me convidaste, recebeste e abraçaste-me e pelas carícias suadas que desenhaste em cada rua do meu corpo e pelas mãos que estendeste generosíssimas até as minhas. Voltar a ti como só desta vez voltei, foi como se para os teus braços nascesse uma outra vez para além daquela ao princípio da noite de 21 de Novembro de 1963, no teu pequeno e principal hospital.
Meu chão e meu amor.
Tornar às ruas onde me aprendi e vi crescer, aos cheiros acidulados dos teus calores, às memorias dos amigos ausentes e presentes, aos retratos ainda vivos das casas por onde me fiz, dos meus pais, avós, tios e tias, às velhas árvores onde cacei pássaros que nunca morreram e sobre as quais tantas vezes, igualmente, fui caçado pelos outros pássaros dos beijos das minhas paixões infantis e dos meus frágeis mas autênticos amores adolescentes, tornar ao menino que era, muito embora nunca o tenha matado, tornar à musicalidade cadenciada do falar do meu povo, à sua hospitalidade, ao seu respeito, à sua vocação para a partilha, foi, sem dúvida, uma forma inequívoca de regressar ao mais verdadeiro deste Eduardo que sou.
Esse filho que faz tanto tempo não me sentia e com quem me ajudaste a reencontrar bem no meio desse imenso útero que és, desse colo que conheci desde o meu primeiro grito fora daquele meu outro útero carnal, acendeu dentro todos os matialés que ainda preservo, os marriés que me voam, as togomas que descasco e os velocíssimos carrinhos de rolamento voando nos mais importantes circuitos desautomobilísticos que ganhei e perdi. Lembram-me, tão nitidamente, as Zalalas onde me banhei e chorei, namorei e sonhei-me, também, homem, quando acreditava que ser homem era bom e que o futuro era uma coisa que desejava fosse ontem para que a liberdade ganhasse em mim os espaços que queria conquistar naquele presente a que hoje tantas vezes me apetece voltar.
Cidade que me vives, Quelimane, onde a minha umbilical idade está certamente enterrada com parte do meu passado, eu escrevo-te para lembrar-te que te respeito o presente como te respeito o que foste, com a mesma intensidade e carinho, com a mesma delicadeza e sensatez como te amava e respeitava quando a vida descobriu-te-me como lugar para exercer-me.
Assim, meu amor, visto agora, neste brando papel do lume aonde tempero as palavras, toda a humildade que é sempre bom ter nestas ocasiões, para tocar-te os longos e verdes cabelos dos teus coqueirais, a doçura ímpar das tuas sananas, o melado estalido gustativo das tuas patanícuas, o maresíaco gosto a rio dos teus tôdues e, finalmente, o lanho da frescura dos beijos que são em ti no feminino todas as mulheres ténues como a lã, explosivas como o limão e festivas como as romãs, nossas esbeltas e luminosas chuabenses, para te dizer, uma vez mais, que te amo.
Aos teus filhos todos, sem descriminação nenhuma, a toda essa gente que se veste de humanidade para que todos os dias te façam respirar e continuares a ser Quelimane, à donzela gingada e dengosa que és, quero abraçar-vos na gratidão reconhecida e no respeito eterno que vos tenho. E a ti, meu amor, chão do meu primeiro grito, o meu mais gritado e sentido beijo e a reafirmação de dizer-te que bom lugar a Vida me deu para vir ao Mundo.
Teu Eduardo White
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