CARTA A QUELIMANE 2
POST SCRIPYTUM 1
Durante muito tempo, desde o não longínquo ano de 78, eu fiz o percurso Maputo/Quelimane/Maputo devido ao facto de ter que gozar as minhas férias escolares, junto à minha família, na cidade que me viu nascer. Lembro-me que era sempre empolgante, entusiástico, rever os meus pais, avós, irmãos e amigos depois de cumprido o calendário escolar. Era como se fosse empreender uma grande, uma longa viagem.
Na manhã do dia 2 de Fevereiro de 2012, após algum tempo sem ir à terra, parecia-me que revivia de novo aqueles momentos com a diferença de que, desta vez, eu não visitaria mais as pessoas que tanto amei com vida. Não teria,assim, a boa e suculenta galinha assada a cafreal e o copo de alumínio gelado com uma esplêndida nipipa esperando-me na saudosa casa da minha querida avó Amélia e nem sequer a empolgada curiosidade dela a desafiar-me os dotes de contador de histórias perante os olhos arregalados e felizes do meu avô Chico. Tudo isso acabara para mim. A morte cumprira o seu papel regenerativo e essas duas figuras que me foram tão tutelares, já não seriam uma realidade neste fim de viagem.
Mas parti. E parti a convite de um amigo que me havia, anos antes, desafiado a fazer esta jornada para inaugurar um projecto maluco dele. Um lodje em plena praia do Sopinho. Como nunca tal convite se concretizara, com este objectivo, haveria, agora, de se concretizar com um outro: o de lançar os meus dois últimos livros na minha terra natal. A amizade que me proporcionava isso, era a de uma figura que toda gente conhece: o jovem e irreverente intelectual moçambicano Manuel de Araújo.
Portanto, às 12:00 horas, em ponto, do dia 2 de Fevereiro, em vésperas do feriado nacional alusivo aos heróis moçambicanos, lá estava eu, encapulanizado, à espera, com os meu pacotes de livros, do avião que me levaria a Quelimane debaixo de um programa oficial preparado pelo próprio Presidente do Município. A ansiedade e o entusiasmo roíam-me os ossos e, por essa razão, quase nem tomara uma refeição com a atenção devida.
Por volta das 13:15, um avião, a turbo-hélice, maltratava-me, na boca, os dentes a baterem de terem o medo como carrasco. Ventoinhas, eu gostava de as ver por dentro, de modo que, uma aeronave impulsionada daquela maneira nunca me inspirara tão grande confiança. Todavia, o senhor panico trabalhava-me a meio gás pelo facto de saber que a nave haveria de ser comandada pelo Amílcar Polana, amigo e colega do meu irmão (ainda penso eu) nesses mecanicos oficios de voar, o que, de per si, predispunha os nervos um pouco mais à tranquilidade.
Uma hora e tal depois, descarbonizado dos 22 mil pés da altitude de um voo tranquilo, iniciava a descida para o verde geometricamente arrumado lá em baixo e de onde se desarrumavam, também, as palhotas escurecidas, pelo sol, no seu aconchegado caniçado. Os rios serpenteantes, as abóbodas macubarrísticas dos coqueirais, as pessoas, minusculíssimas, trabalhando no que me parecia ser o plantio do arroz revelavam-me, com a paisagem, fotografias antigas que a memória me desengavetizava. Fantástico como aquele facto me surpreendeu e tocou tanto. Duas lágrimas envergonhadas, mas substancialmente nutridas, ensaiaram a sua queda face a baixo, não pelo momento mas pela fria e triste sensação de que naquele dia eu não reveria, viva, a figura terna e carinhosa da minha falecida mãe me esperando. Contive-me, pois a sua morte ainda me esta muito presente.
Um baque surdo e muito técnico, confirmou-me a aterrissagem e, em poucos instantes, corpo e espírito tomavam contacto físico com a terra que me viu nascer. Com um aceno breve despedi-me do comandante da aeronave sentado à janela esquerda da mesma e parti emocionado para o tapete rolante a fim de levantar os livros que a simpatia e a beleza sempre chuabense de uma conterrânica Senhora Dona me haviam feito o favor de despachar. A delicadeza serviu para que eu escapasse ao pagamento do excesso de peso. Se ela me lê, o meu muito obrigado mais uma vez. Não lhe sei o nome, porém, a beleza e a simpatia dispensam-no.
Bom, feitas as dêmarches que tinham que ser feitas, estabeleceu-se o meu primeiro contacto com a cidade e as minhas e suas gentes. Logo ali, no aeroporto, um pequeno restaurante solicitava-me o restabelecimento das emoções e os cumprimentos do seu proprietário: um velho amigo e colega da escola Industrial e Comercial 1º de Maio de Quelimane, o Fernando Amado. Brindamos à ocasião com um temperado“Afonso Djakama” a duas pedras de gelo. Não o Presidente da Renamo, é claro, mas o Famous Grouse, rebatizado desta maneira em alusão à perdiz que leva no rótulo. Para apurar tudo isso, a lentidão caracolesca, mas muito nharinga, do empregado de mesa que se movimentava deselegantemente atrapalhadíssimo com qualquer coisa que não percebi bem o que era. Se o patrão, se eu.
Haveria, após aquilo, de rumar a cidade, posto que o protocolo do Munícipio, pelas mãos mocubenses, creio, da Assunção, já me tinham acomodado, mais as bagagens, no carro que me viera esperar. Aqui, ao lado do motorista, começam, então, as histórias maravilhosas que vos quero contar. O velho senhor que conduz ao meu lado, é-me familiar. Em silêncio, andei cavernoso pela memória a rebusca-lo, a tentar encontrar a razão daquele rosto ser-me tão próximo. Fi-lo durante todo o percurso que me levaria do aeroporto à cidade, entre os transeuntes atravessando-nos e as bicicletas taxeiras a gincanizar-nos. Demorado, mas pacientemente, começo a estruturar as lembranças. Uma por uma. Tinha que ser habilidoso e procura-lo, não no meu círculo de relações mas ou no do meu pai ou no do meu avô. Eu era demasiado jovem na altura. Um adolescente sonhador. Como insistisse no exercício certo território apenumbrado, resolvi delicadamente questioná-lo. Algumas operações de reconhecimento ao passado rapidamente nos fizeram chegar lá:
- Menino Dino? - Hey pá, pensei eu, o que vai sair daqui? Perguntei-me.
Não tardou a resposta fosse-me dada.
- Neto do Francisco do Ó? Meu padrinho de assimilação? E com o espanto ainda vestir-lhe o rosto, o velho arremata:
- O teu avô foi o meu padrinho para a minha caderneta de assimilado. És filho daquele White da Madal? Questionou de novo.
- Sou, sim senhor. O mais velho.
- Como você cresceu! Sentencia o velho.
E o carro voou para dentro do tempo, precipitou-se para aqueles buracos da ternura que as coisas boas avivam, abrandou a marcha e definiu um novo roteiro de viagem. A viagem das viagens às minhas memórias de QUELIMANE, que, em próximas crónicas, vos quero passar a contar. Por agora, ficamos aqui. Retorno breve se Deus quizer e O Pais deixar.
Um afectuoso cumprimento do
Eduardo White
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