Por Gento Roque Chaleca., em Bruxelas
“É fácil prometer a Lua em comícios de circunstâncias e anunciar para amanhã a grande aurora da revolução socialista. Mais difícil é arranjar casa a quem a não tem, abrir escolas que funcionem, vencer o desemprego, humanizar as condições do trabalho, fazer participar os trabalhadores na vida das empresas sem no entanto desorganizar a produção, dar de comer a quem tem fome, organizar a providência social, garantindo condições de vida condignas aos velhos e aos inválidos, criar uma rede de hospitais que defenda sério a saúde do nosso povo. Este é o grande desafio que a revolução de Abril nos lançou a todos e que, portanto, temos de enfrentar e de resolver – em função do que será julgada a nossa eficácia – sem perder de vista o condicionalismo a que o nosso País está sujeito, como um dos países europeus mais dependentes do comércio exterior” – Mário Soares, estadista português
(Esta crónica foi escrita a poucos minutos da chegada do 37° aniversário do 25 de Abril em Estremoz e era destinada a um amigo)
Caro amigo Mariano Jofrice Kugogomola Caxixe, acabo de regressar de Estremoz (Portugal) para onde tinha ido assistir a uma palestra do General, escritor e pintor Franco Charais, um dos precursores do 25 de Abril de 1974. Foi uma palestra de cerca de 1h45 minutos em que o General Charais (autor das célebres obras “O Acaso e a História” e “História Viva”) fez uma autópsia geral dos momentos que marcaram o 25 de Abril até à Democracia (com ligeiras pausas para lançar uma e outra piada dos tempos da guerra).
Começou por falar da contestação dos ‘capitães de Abril’ face a utopia e propaganda do “Antigo Regime”, segundo as quais o território português ia do Minho à Timor, sendo por isso imperioso defendê-los do inimigo. Farto de enterrar os seus filhos tombados nos campos de batalha, sobretudo na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique e, por outro lado, inconformados com as sequelas da guerra cravadas nos corpos destes (dois deles estiveram comigo na palestra e ambos sem o olho direito vítimas de mina em Angola), mas, sobretudo, a pobreza que roubava a dignidade a maior parte da população, levou o povo português a conspirar contra o regime salazarista. No tempo de Salazar, disse-me num dos ouvidos um dos mutilados (ambos pára-quedistas) que a conversa nas ruas e nas casas andava em volta dos três “efes”: Fátima, Futebol e Fado. Todos tinham medo de todos; pais dos filhos e filhos dos pais. Eram tempos difíceis que o 25 de Abril veio combater…
Vezes sem conta Charais proferiu duros golpes verbais contra o regime salazarista acusando-o de ter roubado à liberdade ao seu povo por cerca de 40 anos. Aqui temos um ponto que gostaria de discutir consigo, caro amigo Caxixe.
Como explicar que um regime cruel, fascista e minúsculo de Salazar tenha conseguido impor-se por tanto tempo diante das grandes potências mundiais e contra à vontade dos povos colonizados (tanto o povo português como os povos colonizados)? O regime de Salazar foi dos primeiros a construir colónias e o último a se desfazer delas. Porquê será, amigo Caxixe? Para estas perguntas há uma hipótese: A Base das Lajes nos Açores (situada no coração do Atlântico).
Esta base foi determinante para os Americanos e os seus tradicionais Aliados na Segunda Guerra Mundial, na guerra fria e na crise dos mísseis em Cuba. Servia de moeda de troca do regime.
Hoje já não constitui segredo para ninguém (atento às peripécias do mundo) que os americanos e os seus aliados (França, Inglaterra…) apoiaram o regime de Salazar e foi também este um dos grandes motivos que condicionou a entrada de Portugal na NATO a 4 de Abril de 1949 tornando-se deste modo membro fundador. Foram estes que, em troca das Lajes, introduziu nas forças armadas portuguesas o Estado-Maior General que antes não existia e a estruturou até os dentes. É esta a minha opinião, não sei se concordas com ela.
Voltando à meada, o General Charais disse que o 25 de Abril de 1975 marca a viragem da História portuguesa mas trouxe, também, logo após a sua proclamação, um novo inimigo: que foi a emergência de cogumelos que mais não fazem do que destruir o país. E não poupou críticas ao General Spínola (é bom que se diga que Spínola chega a chefiar o governo por indicações de Marcello Caetano, este só aceitou entregar o “poleiro” se o poder fosse entregue à um general), que, no dizer de Charais, era um ambicioso que defendia o federalismo, ou seja, aceitava o direito à autodeterminação das colónias, mas não aceitava a independência das mesmas. Isto custou-lhe caro.
Perguntei-lhe se o 25 de Abril seria possível sem a intervenção dos movimentos nacionalistas, nomeadamente a FRELIMO, MPLA e PAIGC, facto que respondeu com reservas. Entendi que para ele, é difícil dizer ao certo qual é a maternidade do 25 de Abril. Tem haver um pouco com a estória do ovo e da galinha, qual deles veio primeiro? Saberás tu responder amigo Caxixe? Temos que reconhecer uma coisa: o 25 de Abril também é fruto do descontentamento das classes baixas em Portugal e, sobretudo, dos capitães.
Aqui está uma das razões de terem sido os capitães a fazer o 25 de Abril e não os generais (estes dias antes da revolução tinham ido beijar aos mãos à Marcello Caetano, outro federalista). Os capitães eram os que andavam a nu nas casernas, os que sofriam na pele e na alma as dentaduras do regime, enquanto os generais andavam aos beijos com o regime.
Nessa altura, os quartéis não tinham sequer meia dúzia de coronéis, mas depois da revolução de Abril, desabafou Charais, começaram a aparecer às carradas como cogumelos.
Não será este um caso semelhante o do nosso país, amigo Caxixe?
Não terminou este capítulo sem dar um murro na mesa. Charais, antes que me esqueça, militou durante dois anos em Mutarara, Tete. Charais ainda teve tempo para desferir duros golpes contra àqueles que levaram o país a aderir à União
Europeia. Não citou nomes, mas também não é difícil adivinhar quem são. No entender daquele interlocutor, os caminhos do desenvolvimento de Portugal passam pelos mares da África e da Ásia e não nos corredores da União Europeia. Para Charais a UE não passa de guilhotina de Portugal. Os sonhos e a esperança dos ‘capitães de Abril’ morreram nos corredores da UE. Os que ontem “F” o país são os mesmos que hoje se armam em valentes, heróis do povo e com o FMI à porta, disposto a abrir mais um furo no cimento dos portugueses. Foi o único momento naquele momento que vi Charais triste, aborrecido e bastante irritado. Dois “goles” de água fresca, por recomendação da esposa, arrefeceram-lhe o ânimo. “Chaleca, meu amigo, deves ler “o Acaso e a História”, pois nele saberias que são e como destruíram o país”, disse Charais. Ainda tive a ocasião de, durante a palestra, provocá-lo com uma pergunta que o deixou perplexo. Quis saber se a Revolução de Abril foi uma revolução ou um golpe de Estado?
Charais prefere chamar-lhe “Revolução”, a doutora Ana Salazar (ingrato apelido de uma docente de grande gabarito) diz que foi um golpe de Estado dos militares contra o regime.
De que lado está a verdade, amigo Caxixe? Para o general Charais a revolução acabou com o regime fascista de Salazar embora alguns dejectos tenham resistido à creolina, por outro lado, para Ana Salazar, o que houve foi um golpe de Estado que colocou uma junta de militares no poder. Junta essa que desencadeou, em Portugal, momentos de grande tensão, com golpes e contragolpes. O golpe falhado de 11 e o golpe de 25 de Novembro provam isso… Uma revolução, enfatiza Ana Salazar, pressupõe uma mudança radical da estrutura económica, política e social de um país, o que não aconteceu durante este período em Portugal.
Mas Charais desdramatizou esta polémica. Não te falei do número de participantes assim como a “patente estatutária” de cada convidado por achar estas questões irrelevantes. Tenho de deixar morrer aqui as palavras porque tenho horário marcado para Bruxelas. Haverá mais…■ ‘Kochikuro’ (obrigado)
O AUTARCA – 27.04.2011
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