Andamos todos confusos. Confusos é pouco. Antes desorientados, angustiados, revoltados. Este Abril que vivemos hoje é o tempo da comissão liquidatária do pouco que restava de um outro tão diferente de há 37 anos... O caos tomou conta do País, que, para cúmulo da ironia (que também pode ser trágica!), o vive em pleno esplendor: esplendor da palavra fácil gratuita, vazia, irresponsável. Ninguém a quem estendam um microfone resiste à compulsão de acrescentar ruído ao ruído já quase ensurdecedor.
Agora foi de novo a sua vez... de novo porque já houve outras (talvez demasiadas) em que as suas palavras, acredito que contra-vontade, foram música de violino para os ouvidos daqueles que andam há 37 anos a tirar desforra de uma derrota que traz o seu nome. Esses não vão largar, mais a mais agora, que as cartas lhes são mais do que nunca favoráveis.
Otelo, você deu-lhe os trunfos todos! Afirmar que "se soubesse como o País ficava, não tinha feito a revolução" é mais do que alguma vez poderiam sonhar. E não vão perder-se em exercícios de hermenêutica barata, que não é essa a sua vocação, como não fizeram quando das suas incendiárias declarações sobre o "Campo Pequeno", o "Fidel Castro da Europa" ou "os trabalhadores têm sempre razão". Estas palavras colaram-se-lhe à pele, e você tem passado estes anos a tentar esclarecer o contexto, as motivações, os sentimentos que as ditaram. Com pouco ou nenhum sucesso, diga-se a verdade. Por cada aniversário da Revolução, elas lhe são atiradas à cara, intactas como cristais de puro ódio e ressentimento. Fazem já parte do jogo viciado da contra-revolução que, em vez de argumentos, usa o golpe baixo, o ataque pessoal, o descrédito dos homens para descrédito da obra. Primeira batota: confundir os homens com a obra. Porque há, todos sabemos, uma verdade que é simultaneamente um grande mistério: como todos os grandes momentos da história, o 25 de Abril foi feito por homens vulgares e cheios de defeitos. Mas que uma força maior uniu, e escolheu para artífices de desígnios que em muito os ultrapassam. Todos os defeitos se lhe podem perdoar, até porque de alguns deles a história se serviu para concretização dos seus enigmáticos planos. No seu caso leviandade, vedetismo, inconstância, mas nunca, para glosar o ilustre prefaciador dos seus dois livros, Eduardo Lourenço, "em absoluto infiel à audácia e generosidade que um dia fez de si a chave da nossa revolução".
Ora aqui é que bate o ponto: as suas declarações tomadas à letra são a confissão de um tremendo erro ou a tardia descoberta de um embuste. Ambos trágicos e sem remédio. E isso, se é devastador pessoalmente, historicamente é um gigantesco absurdo. Tomadas à letra, repito. Porque eu, e muitos outros seus amigos e admiradores, fazemos-lhe a justiça de tentar, mais uma vez, perceber o contexto, as motivações, os sentimentos: o desencanto, a angústia, a raiva e a impotência pelo que fizeram deste país. Mas não compreendemos nem aceitamos que, na crise mais grave que vivemos após a Revolução, as suas palavras sejam achas para a fogueira inquisitorial em que se joga tudo o que de longe possa ainda lembrar Abril.
Estamos a dias de um novo aniversário. E já que não vai haver sessão solene (acabou-se a hipocrisia), nada melhor que uma boa polémica, assim ao estilo do jogo do passa-culpas dos políticos, agora sobre o 25 de Abril (e, claro, as suas responsabilidades na crise actual...). As suas palavras, Otelo, são uma óptima deixa. Mas as cartas estão viciadas. E acho que você devia "renunciar". Ou então exigir um novo baralho: limpo e sem truques.
MARIA MANUELA CRUZEIRO (Ex-investigadora do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra)
DIÁRIO DE NOTÍCIAS - 2011-04-20
Recorde http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2011/04/otelo-se-soubesse-como-o-pa%C3%ADs-ia-ficar-n%C3%A3o-fazia-a-revolu%C3%A7%C3%A3o.html
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