Monday 2 August 2010

Fernando Manuel, o cronista

Por Armando Nenane
É conhecido pelo seu incontornável hábito de sofrer, detectável na forma como retrata aspectos da vida quotidiana nas suas crónicas, onde as personagens, que regra geral narram as suas estórias na primeira pessoa do singular, não raras vezes se riem da sua mísera condição. Na presente entrevista, o jornalista e escritor Fernando Manuel revela que não quer escrever um livro para não ser medíocre, mas reconhece que o facto de ter vivido o colonialismo, a independência, o Samora, o pacifismo do Chissano e agora a “esculhambação” de Guebuza, fá-lo ter muito que narrar, daí a razão de ser das suas crónicas semanais.
Nascido a 20 de Janeiro de 1953, na Maxixe, Fernando Manuel veio à Lourenço Mar­ques aos nove anos, onde estudou na Escola Primária do Bairro Popular da Munhuana, no Liceu António Eanes até ao 5º ano, no Liceu Salazar até ao 7º ano e na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), onde fez o 1º ano até que “alguém mandou fechar a faculdade de Direito por pensar que aquilo era um ninho de reac­cionários”. FM, como é cari­nhosamente tratado, é autor dos livros de contos “O Homem Sugerido” e de crónicas “Chá das Sextas”. Segue-se a entrevista.

Nas últimas crónicas da coluna “Tanglomanglo” tem contado muitas estórias sobre o passado. Porquê essa nostalgia?
De certo modo tenho tido a tendência de resgatar o pas­sado. Não estou necessa­riamente a escrever sobre mim no passado, mas sobre a minha geração. A maior parte das pessoas da minha geração está a desaparecer. A morte do João Paulo criou um precedente na nossa geração. Depois foi o Simão Manhiça, o Chirindza, o Novela, o Major Teodoro, portanto toda a malta do restaurante Portugália, do Goa, do Liceu António Eanes e do Liceu Salazar. O teste­munho da minha geração está a desaparecer. Meu sonho era escrever um livro, mas não vou escrever porque não quero ser medíocre. O Gabriel Garcia Marquez disse uma vez que “se for para ser escritor tinha que ser um grande escritor, embora os grandes escritores pertençam ao passado”. Há coisas interessantes que me marcaram nesta vida. Vivi o colonialismo, a independência, o Samora, o pacifismo de Chissano e agora a esculham­bação de Guebuza. Não posso ficar calado, pois, como dizia Craveirinha, “traição é saber escrever e não escrever nada”. Por isso escrevo as minhas crónicas semanais.
Na verdade, Guebuza é poeta. Como dizes isso de um poeta?
Ser poeta não é fazer crónicas em coluna. Não é. Um poeta que cria patos. O próprio sobrinho, o Celso Manguana, autor de “Pátria que Me Pariu”, em uma entrevista que me concedeu, disse que “isto não é um país, é um sítio”. Chamam aquilo poesia de combate, não existe poesia de combate. Poesia é poesia, ou você é poeta ou não é. Acabou. Poesia é sentimento, é sublimação, é dor.
É jornalista e escritor. Onde começa um e termina outro?
O jornalista é o homem que sustenta a mulher que é o escritor. O jornalista vai à escravatura para sustentar a mulher que é o escritor. Fazer arte em Moçambique não sustenta a ninguém. Estou há quatro anos sem conseguir publicar o meu livro, resultado das minhas crónicas da coluna anterior, a “Missa Pagã”. Um banco dá-te 300 mil meticais para abrir uma padaria, mas só 50 mil para publicar um livro, o banco vai te perguntar: isso dá lucro? E dirás: não sei. E o banco dirá: não dou. Mesmo as grandes empresas de telefonia móvel, são duas, não preciso dizer os nomes: utili­zam os músicos, depois dei­tam-nos fora.
O que falta para publicar “Missa Pagã”?
Olha, consegui sustentar a primeira parte da sua cons­tituição com o meu próprio bolso, já vazio de natureza. Paguei a Emília Banze para fazer a recolha dos textos, paguei a revisão ao Mauro Pindula, paguei o layout e o livro está em disco. Já não tenho o exemplar impresso. Ninguém me dá dinheiro para a publicação. A Paola Rolleta, o Júlio Carrilho e o Edérito Armindo Manuel escreveram as suas opiniões sobre as crónicas que compõem o livro. Havia uma promessa da Me­diacoop, SA no projecto para a publicação, tal como publiquei “O Homem Sugerido” pela Tempo, mas esse projecto ainda não arrancou. “Missa Pagã” tem 50 crónicas, de um total de 350 que o Mauro me ajudou a seleccionar. Tentei a publicação com a Irene Brás e falhou. Tentei também com o Manuel Tomé e também falhou. Talvez tenha sido por bandalheira minha. Sou muito inconstante. Manuel Tomé, refiro-me àquele que foi meu colega de profissão, uma vez que ele estava no Notícias e eu na revista Tempo, pediu para ver antes o conteúdo dos textos. Depois, nunca mais.
É hoje o Fernando Manuel que projectou ser?
Não sou uma árvore. Eu evoluo. Não sou um vegetal, mesmo os vegetais evoluem. Não estou parado, nem quero estar. Tenho uma vantagem: sempre estou a alimentar os meus neurónios, porque tenho uma grande capacidade para sofrer. Estive na tropa, onde fui furriel miliciano. Estive na Petromoc, depois estive na Tempo. O Pablo Neruda dizia que “os grandes homens sabem sofrer em silêncio”. Ou, melhor, dito isto de outro modo por Osama Bin Laden: “o silêncio é um grande martírio para quem tem que o aturar”.
Há uma altura que andou a vender “O Homem Suge­rido” pessoalmente, como quem não acredita nas livra­rias…
Não é isso que aconteceu. A culpa é da Tempográfica que não distribuiu o “O Homem Sugerido” como devia ser. Meteu nos seus armazéns na 24 de Julho. Quando a nova administração de Abel Bichinho adquiriu o armazém, mandou tudo que lá havia para a lixeira. Fiquei a saber que os meus livros estavam na lixeira, daí que pedi ao Azarias, o nosso motorista no SAVANA, e fomos carregar todos os livros. Cerca de 350. Tenho-os em casa. Quando estou com falta de taco, vou buscar um e vendo a 100 meticais. Não vou ficar com o livro em casa, porque eu já li.

Geração da Viragem

Quais as suas grandes referências literárias?
A grande referência literária que eu tenho sou eu próprio. Tenho uma boa técnica de escrita, sou um poeta, pobre, bonito e inteligente.
Quais os autores que mais o impressionam?
Gosto muito de banda desenhada. O resto não me interessa, apesar de ler esse resto também. Na banda desenhada, impressiona-me Hugo Pratt, quem criou Corto Maltese e seu compadre Rasputine. O primeiro é um herói romântico, mas sabe se defender. É cortês quando bem tratado, mas violento quando provocado. O Rasputine é o inverso disso, é um antípoda do Maltese. É um assassino. Portanto, todos os livros são assim e toda a gente sabe disso. O tio Patinhas tem um antípoda que é a Maga Pa­tológica. O Zé Carioca tem a Rosinha como antípoda. Mes­mo na Mafalala, existia o Modi que batia muito, mas me defendia sempre. O Matasete, o Ali Baraza, o Gimo Two Batata. A vida real é igual aos livros, tem heróis e vilões. Acabou.
A geração da viragem está em voga nos últimos tem­pos…
Não tenho nada a ver com isso. Oiço falar, mas não me diz nada. Não sou carga de um contentor para ser compar­timentado. Eu vivo, pronto e acabou. E gosto de viver com quem vivo. A pessoa que diz isso quando nasceu eu estava a sair da tropa. Tomo banho, mudo de roupa, não saio de casa sem tomar chá. Agora se isso é uma geração, tudo bem. Geração da viragem significa o quê? Viragem de quem? Para fazer o quê? Os ideólogos criam essas coisas para ma­nipular as nossas mentes, sempre foi assim e sempre será. Criam essas coisas para manter as baixas mentes ocupadas, porque muitos de nós somos uns desocupados. Mesmo o Mundial de Futebol, organizam durante anos e anos para manter as pessoas ocu­padas. Tem a volta a França, o Festival da Cultura, os jogos da CPLP, os jogos africanos, para as pessoas não pensarem em coisas sérias. É por isso que quando as pessoas andam entretidas, ocupadas, ocorrem grandes mudanças. Não me espantaria se depois do Mun­dial ficássemos a saber que a Constituição da República já foi alterada e que alguém pode continuar por mais sete man­datos. Juro, não me espantaria. Ou acordar e saber que a minha própria casa já é da Frelimo, como ali na Beira!
Não consegue ser escritor sem ser político...
Qualquer ser humano é político. Sou um escritor, mas não vivo numa ilha. Mesmo se vivesse numa ilha, teria que tomar decisões. Mesmo se escolhesse o isolamento. Estamos sempre a tomar decisões. Mesmo que diga que eu não sou da Frelimo, o meu pronunciamento já é um acto político. Como disse Fredrich Nietchze um dia: “a todo momento temos que tomar decisões, a partir daí somos políticos”. Onde vou beber, o que vou vestir, é política, é uma questão de vida. Basta viver na cidade para sermos assim. Política vem de polis, que quer dizer cidade, lítica, gestão, ou seja, gestão da cidade.
Nas suas crónicas, tem sido muito sofrido. Fale-nos desse teu hábito de sofrer, lembra-nos Carlos Drum­mond de Andrade…
Não sou eu que sofro. Eu escrevo na primeira pessoa do singular e muitas pessoas pensam que sou eu, quando apenas há um personagem que narra a estória na primeira pessoa do singular. A maior parte das pessoas da minha geração está a desaparecer. Quando escrevo na primeira pessoa do singular, as pessoas olham para mim e pensam que eu sou um deles. Mas não sou. Sinto-me bem assim, quando as pessoas pensam que sou igual a elas. Quantos abraços recebo por isso. Porque as pessoas estão a sofrer e eu tento ajudá-las escrevendo, confundindo-as. Isso tem um efeito terapêutico. Sentem-se felizes quando tem ao lado delas um jornalista que bebe Tentação e dizem: é como nós. Mas não sou. Eu sou artista.
Frequentou a Faculdade de Direito, mas não terminou o curso. O que se passou contigo?
Matriculei-me na Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane e fiz o primeiro ano. Quando passei para o segundo ano, a Frelimo mandou fechar aquilo. Samora descobriu que 90 por cento dos estudantes da Faculdade de Direito vinham de Inhambane, que eram reaccionários e mandou fechar. Note-se bem que eu não estou a dizer que foi o Samora Machel, alguém lhe meteu isso na cabeça. E quem nos chamou atenção para isso foi o nosso professor da cadeira de Sociologia Política Africana de nome Aquino de Bragança. Foram meus colegas Cláudio Nhan­damo, Jorge de Jesus Mban­guiane, Mário Mangaze, o Rodolfo Nombora, Adolfo Jorge Justino e por ai fora. Não voltei mais a faculdade. Minha mulher pergunta-me se não estou arrependido por ter seguido o caminho que segui, que se tivesse continuado na Petro­moc seria hoje um quadro superior. Eu respondo-lhe que depois viria a reforma. E ela me teria em casa, sentado nu­ma cadeira, reformado, a olhar para ela. Com desdém. Não quero isso. Quero andar ocu­pado até a morte. A escre­ver.
Faz parte da Geração Charrua…
Não, não digas isso. Nunca. Aquela equipa era medíocre. Uma equipa chefiada por Juvenal Bucuane, não. Nunca fiz parte disso. Não sou da Geração Charrua. Apenas colaborei com alguns textos para a revista “Charrua”. Não sou daquela equipa.
O que pensa do que se escreve hoje?
Há literatura e literatura. Hoje publica-se muito, mas 99% dos livros eu não leio. São medíocres. Não penso nada. A preocupação dos escritores hoje é aparecer na televisão. Literatura não é isso. É um acto de solidão, é isolamento, é sofrimento. Mesmo em jornalismo é assim. A criação é um acto de isolamento. Não se escrevem livros na televisão.
SAVANA – 30.07.2010

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