Tuesday 8 June 2010

Apresentação do livro ''Ilha de Mocambique'' por Jorge Ferrão

Apresentar obras literárias é um ritual complexo. Não sei se justificável, ou imprescindível. Nunca nos libertamos destes modelos. Temos sempre de falar. O público, sempre terá sempre de escutar. Apresentamos os autores, a obra,
lemos um poema, pedimos o grupo cultural para cantar e dançar, enfim, com um
pouco de sorte bebemos um champanhe, só aqueles autorizados. Depois, os
autógrafos.
Me coube de passar minhas impressões sobre esta obra. O livro Ilha
de Moçambique, de Eugénia Rodrigues, Aurélio Rocha e Augusto Nascimento.
Livro que não sendo de história se carrega de historicidade. Aurélio Rocha, o
Historiador, fotógrafo em horas mortas e vivas, eu conheço bem. Ele entra para
nossas vidas sem autorização. Ou outros, só os conhecemos pelo que escreveram,
nesta obra.
Queria fazer-vos um resumo de 150 páginas de memórias, maravilhosas
fotografias, exuberantes descrições, as notáveis portas árabes, o templo Hindu, a
Mesquita do Gulamo, o edifício da imprensa nacional. Tantos outros detalhes
que o tempo empurra e as águas querem apagar. Nem sabia que o primeiro jornal
Moçambicano nascera aqui em Muipiti. O Progresso era seu nome. Hoje quase não
lemos nenhum Jornal na Ilha, O texto nos recorda o Governador Pereira do Lago,
esse nome da rua do nosso Centro decisório Tal como no passado, Muipiti continua governando o continente.
Enfim, tarefa árdua, descrever este livro e esta pequena porção de terra, calcário e palmeiras, que foi porto e entreposto, presídio e desterro, local de fantasmas e sombras, Mulheres de rostos dos mais belos e lindos da costa oriental africana, terra de monções e revoluções.
Na realidade, ninguém conseguirá resumir esta Ilha que, mesmo sem dono, foi usurpada e ultrajada, lugar onde portugueses, turcos e holandeses se digladiaram como se a propriedade fosse sua. Muipiti das eternas convergências de culturas, cores, frutas e árvores não tem livro e livros que sobrem. Elevada a vila em 1763, a Ilha testemunhou de tudo, até dos expulsos Jesuítas e hoje, ainda segura os poços de águas salobras de Marangonha e o sorriso das crianças que jogam futebol sem bola, nas praias sem areia.
Confesso, então, minhas incompetências. Estas são tarefas dos dotados críticos literários. Mesmo o escritor Mia Couto, diz sempre que a apresentação de um livro parece ser um contra-senso, uma contradição insolúvel.
Porque será que o devemos apresentar? Afinal não vamos ler? Por favor leiam. Ler
é um bom exercício. Leiam tudo e, sobretudo, sobre Muipiti.(x)

Visito Muipiti por portas e janelas. Cabaceira e redondezas. Procuro algo que nem eu mesmo sei. Estou enfeitiçado. Acho que procuro o primeiro Moçambique. Quero, eu próprio, reviver a primeira capital, descobrir porque me persegue esta impressão estranha, porém, agradável, de vasculhar a fonte de escritores, músicos, poetas. Gostaria, até, de entender os amigos do alheio que, nesta costa, desvendam tesouros que a Mãe natureza jamais permitiu que partissem.
Afinal o que tanto nos atrai e motiva?

Visitei um poço, num dia sem sol.

Não sei se foi Cabaceira Grande, Média ou Pequena. Nem importa. Fui recebido por curiosos. Como não existe mutheko (trabalho), a qualquer hora do dia ou da noite, sempre se encontram os disponíveis. Espreitam câmaras fotográficas e destrocados. Basta ser Mukhunha, e logo se colmeias, para experimentar essas línguas de longe.

O poço estava seco. Aliás, Omuipiti e Cabaceira não têm água. Sem água não há vida. Assim, dizia o ditado. Vida, porém, por aqui não falta. Em outros lugares, sem água, as pessoas dispersam. Migram. Aqui, só aumentam.
Será que vivem de água salgada?
Depois de muito papo, que eu, também, gosto, fui recebido por um jovem, idade esquecida. Era velho mesmo, mas como velho é trapo, digo que era jovem avançado. Nem esperou para saudar e cantarolou. .
Vi o Senhor a falar com aquelas Muthianas , mas vou-lhe pedir para não acreditar em nada. Essas Mulheres de Mussiro tudo que falam é mentira. Favor não acredite nelas. Aqui, eu é que sei de todas as coisas. Eu é que conheço tudo bem.
Pode deixar, meu velho, não acreditarei. Pensei para os meus botões.
Como será que ele saberia do assunto, mesmo estando distante? Ele tomou a palavra, novamente, agora com ar mais firme e de quem vasculha todos os assuntos.
- Elas falavam do Vasco da Gama.
Estas pessoas aqui da Cabaceira gostam sempre de dizer que conheceram Vasco da Gama. Tudo mentira, ninguém aqui conheceu Vasco da Gama. Eu fui o único que conheci Vasco da Gama. Ele vinha sempre buscar água neste poço. Não era aquele sem olho?
Falou com tanta certeza que eu, mesmo sem querer, acreditei. Não só acreditei, como até apertei a mão da pessoa mais idosa do mundo. Me senti privilegiado. Por isso, adoro este lugar.
Calculadas as pressas, ele deveria ter próximo de 543 anos. Depois, jogamos conversa fora. Lamentações. Ponte matou negócio de Muipiti. Deveriam destruir. Isto não é mais Ilha. Peixe tem medo de visitar as redes. Os ventos não sopram as vidas.(x)
WAMPHULA FAX – 07.06.2010

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