Domingo, 05 Julho 2009 17:17 José Belmiro
[Sylvia Figueiredo, juíza do TPI]
Sylvia Figueiredo, juíza do TPI
Segundo Sylvia Figueiredo, juíza do Tribunal Penal Internacional
Chama-se Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, de nacionalidade brasileira, e é juíza há mais de 30 anos. Actualmente, é juíza do Tribunal Penal Internacinal (TPI), cuja sede situa-se na cidade holandesa de Haia. O mandado de captura emitido pelo TPI contra o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, acusado de genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade, conta com a sua assinatura.
Steiner, que integra o corpo de magistrados do TPI desde 2003, é uma das magistradas que compõem a primeira secção preliminar do TPI. A juíza brasileira, que trabalha com a magistrada ganense Akua Kuenyehia e com a letã Anita Usacka, é responsável por procedimentos preliminares em casos envolvendo a República Democrática do Congo e a região sudanesa de Darfur, onde conflitos étnicos e políticos já deixaram mais de 300 mil mortos e 2.5 milhões de refugiados.
Steiner esteve recentemente na capital do país, para tomar parte de uma conferência promovida pela Ordem dos Advogados, cujo objectivo era analisar as vantagens e desvantagens que o país pode ter, caso decida aderir ao TPI. Em entrevista exclusiva ao “O País”, Steiner fala do TPI e dos processos que, neste momento, estão em curso naquele Tribunal, incluindo o mandado de captura contra o presidente sudanês, Omar al- Bashir.
O que é o TPI e qual é a sua vocação?
O TPI é um tribunal criado por um tratado (Estatuto de Roma) em 1998 e entrou em vigor em 2002. Portanto, é um tribunal novo que só começou a funcionar efectivamente em 2003. Foi criado como primeiro Tribunal Penal Internacional de carácter permanente para processar e julgar aquelas pessoas acusadas de cometer crimes mais graves contra a paz e a segurança da humanidade. Trata-se dum tribunal de carácter complementar e não veio para substituir o poder judicial dos estados. O TPI actua só quando o estado, por qualquer razão, não pode ou não quer actuar.
Qual é o peso que as decisões do TPI têm sobre os estados não signatários do Estatuto de Roma?
Bom, em princípio, o TPI não tem competência a não ser sobre pessoas nacionais dos estados que ratificaram o estatuto ou pessoas que praticaram crimes em territórios que ratificaram o Estatuto. A única excepção é quando o Conselho de Segurança da ONU remete um caso ao TPI. O Conselho de Segurança da ONU tem poderes, por exemplo, para criar tribunais ad hoc como aconteceu com o caso da ex-Jugoslávia e do Ruanda. Igualmente, tem poderes para enviar casos para o TPI.
Como é que são materializados os mandados de captura emitidos pelo TPI contra indivíduos que se encontram em estados não signatários do Estatuto de Roma?
O TPI depende totalmente da cooperação internacional. O TPI não tem polícia e não invade estados para prender seus acusados ou suspeitos. Quando se trata de um suspeito ou acusado de um estado que ratificou o Estatuto, esse estado tem a obrigação de cooperar com o TPI. No caso de estados que não ratificaram o estatuto, o TPI depende da cooperação de outros estados para executar a ordem de captura. Além disso, a resolução do Conselho de Segurança da ONU recomenda que todos os estados cooperem com o TPI.
Muitos países africanos mostram-se revoltados com o TPI, alegadamente porque este Tribunal toma decisões pró-ocidentais, ou seja, dizem que o mesmo só age contra líderes africanos…
Esta tem sido uma espécie de acusação recorrente de que o TPI estaria tendo como alvo predilecto os líderes africanos. Creio que esta afirmação é principalmente fruto da desinformação ou da informação desvirtuada. O TPI tem, actualmente, quatro situações sob sua jurisdição. Três dessas quatro situações, referentes ao estado do Uganda, da República Democrática do Congo e República Centro Africana, foram mandadas para o TPI pelos próprios estados, porque, pelo facto de estarem em conflito armado, se sentiram incapazes de proceder ao julgamento. Não fomos nós quem foi buscar os casos, foram os próprios estados africanos que nos enviaram.
O quatro caso é referente ao Sudão, que também não fomos buscar, mas o Conselho de Segurança da ONU enviou-nos o caso para que o procurador iniciasse a investigação.
Acha que esta ideia de que o TPI está ao serviço do Ocidente é degenerada?
Eu acho que pode ser fruto da falta de informação. Talvez um dos grandes problemas do TPI seja a dificuldade de divulgar um pouco mais o seu trabalho e passar a informação. O TPI foi criado na conferência de Roma por 120 estados e, actualmente, tem 109 estados-parte dos quais 30 são africanos. Os estados africanos tiveram um papel fundamental na criação do TPI na conferência de Roma.
Olhando concretamente para o caso de mandado de captura contra o presidente sudanês, Omar Al-bashir, qual é a análise que faz do facto do mesmo contar com o apoio da Liga Árabe e da União africana?
Bom, como juíza eu não faço análise política, não tenho condições de fazer análise política. Foi feita uma investigação sobre a situação no Darfur, há quatro ou cinco anos, por uma comissão nomeada pelas Nações Unidas, presidida por um dos mais eminentes juristas internacionais, o Professor Cassezy, e concluiu que estavam a ser cometidos graves crimes no território do Darfur. A partir disso, o Conselho de Segurança da ONU remeteu o caso ao TPI. Quando se remete um caso ao TPI, não é automaticamente que uma ordem de captura é emitida. Cabe ao procurador decidir se há motivos suficientes para se iniciar uma investigação penal. Depois duma investigação (ao “caso Al-Bashir“), levada a cabo durante quase três anos, o procurador foi à sala judicial para pedir a emissão da ordem de captura. Portanto, o único material que os três juízes do processo acessam é o material trazido por uma investigação e que é analisado do ponto vista legal e não do ponto de vista político. O TPI não e não pode fazer análise política.
Existem países dentro da União Africana que ratificaram o estatuto de Roma, que cria o TPI, mas são solidários com o presidente Al-Bashir do Sudão. qual é o tratamento que se dá a este tipo de situações?
O TPI não faz análises políticas. Os países que ratificaram o estatuto são obrigados a cooperar.
Caso não cooperem?
Se eles não cooperarem, o TPI pode decidir enviar uma comunicação à assembleia dos estados-parte, que é composta por todos os estados que ratificaram o Estatuto, para que tome as medidas que achar necessárias. Na verdade, o estatuto de Roma é um Tratado e um estado, quando assina um Tratado, assume o compromisso de cumprir com o Tratado. Este é o chamado princípio da boa-fé em Direito Internacional. E o estado que não cumpre com as suas obrigações está a cometer um ilícito internacional, e caberá à assembleia dos estados-parte decidir se toma alguma medida.
Que tipo de medidas?
Não tenho mínima ideia, porque isso não está regulado. é uma decisão política da assembleia dos estados-parte.
Se o TPI só actua em países que ratificaram o estatuto, volto à questão do Sudão e pergunto: Este país é parte?
O Sudão não é. Mas faz parte daquela excepção de um caso que foi remetido pelo Conselho de Segurança da ONU. Ai não há limitação da sua actuação.
Quais são os pressupostos que levaram o TPI a aceitar as provas apresentadas pelo procurador Ocampo contra o presidente Al-Bashir?
Os mesmos pressupostos que levaram o TPI a aceitar os outros casos que estão em andamento no TPI. A existência de indícios razoáveis da existência de crimes que são da jurisdição do TPI e indícios de autoria
E tais indícios existem?
Se não existissem, a minha secção não teria expedido um mandado de captura. Os documentos recebidos, que foram enviados pelo procurador, convenceram a sala de que existem indícios razoáveis. A emissão do mandado de captura é um patamar mais baixo do que um patamar exigido para uma condenação.
O facto do presidente do Sudão continuar a “passear” em vários países, apesar de ser procurado pela justiça internacional, não choca com os juízes do TPI?
Eu acho que não é uma questão de ficarem chocados. Os juízes preocupam-se com a falta de execução das suas decisões. Não é só o caso do Sudão, temos o caso do Uganda no qual, há cerca de cinco anos, foram expedidos mandados de prisão e até hoje ainda não foram cumpridos. há um mandado de prisão contra um cidadão da RDC que ainda não foi cumprido. O TPI depende sempre da cooperação dos estados. Se os estados não cooperam, porque não podem ou não querem, cria-se um problema jurídico de falta de cooperação. Mas não há nada que o TPI possa fazer.
Caso o presidente do Sudão não seja detido, qual será o futuro do processo?
Não se dá andamento do processo. Não existe processo à revelia.
Há sectores que acham que a existência desse processo põe em causa os esforços de pacificação do Darfur. que análise faz a estes pronunciamentos?
Eu acho que o TPI não tem que fazer análises deste facto. O TPI não tem que ir ao território discutir com os políticos, com as forças armadas, para chegar à conclusão de que a expedição do mandado de captura é conveniente ou não. Um Tribunal imparcial e independente não tem que fazer esse juízo de conveniência, pois um juízo de conveniência é político e nós evitamos fazer isso.
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