Friday, 5 June 2009

Um marxista e a crise

Rolando Astarita é um conhecido economista argentino.

Professor na Universidade Nacional de Quilmes, ele é responsável pelas cadeiras de “Macroeconomia”, “Dinheiro, crédito e bancos” e “Sistema financeiro internacional”, englobadas no Curso de Comércio Internacional. Lecciona também “Mudanças no sistema económico mundial” no Curso de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e ainda “Desenvolvimento económico” do Curso de Economia da Faculdade de Ciências Económicas.

É um investigador de temas económicos ligados à teoria marxista, tendo vindo a tentar dar, nomeadamente no seu livro “Valor, mercado mundial e globalização” explicações para o fenómeno da internacionalização do capital na lógica do valor do trabalho.

Astarita deu a 17 do passado mês de Maio uma entrevista ao jornal argentino Página 12, na qual sustenta que a crise que neste momento o mundo atravessa não é apenas devida ao mau funcionamento do mercado financeiro, mas da economia no seu conjunto. Segundo ele, deu-se aquilo que Marx designava por ‘pletora de capital’, isto é, uma superabundância de capital líquido, taxas de juros muito baixas determinadas pela Reserva Federal, e pelo afluxo de capitais aos Estados Unidos, factor determinante de uma abundante oferta de crédito.


Pela sua indiscutível actualidade e interesse é do texto integral dessa entrevista, que vi inicialmente em português na “Carta Maior” e também em “El Revolucionário” na sua versão original, que eu agora dou conta.

Diversas teorias económicas, desde progressistas a heterodoxas, afirmam que estamos numa época de hegemonia do sector financeiro sobre o produtivo e numa hipertrofia do capital especulativo, que deixou a descoberto o abrandamento da economia mundial nos últimos 30 anos. Num diálogo com o caderno Cash, suplemento económico do Página 12, o investigador marxista Rolando Astarita assinalou que, na realidade, no último quarto de século houve uma expansão mundial do capitalismo, que a distância entre ricos e pobres não impediu o crescimento dos mercados e que a crise não se deu só por um mau funcionamento do mercado financeiro, mas da economia em seu conjunto. “Há que se pensar o tal do capital fictício com parâmetros; ele não pode fazer perder-nos a análise estrutural”, explicou.



Acredita que a crise financeira marca a queda da ditadura das finanças?

Não vejo que haja uma ditadura das finanças, mas um domínio do capital em geral, acentuado de maneira muito profunda a partir dos anos 80. No último quarto de século, o disciplinamento do capital sobre as classes trabalhadoras operou através de mecanismos directos, mas também do mercado, com políticas monetárias duras, aberturas comerciais, flexibilização laboral. Mas não vejo distinção de sectores dentro do capital.

No entanto, o crédito e as dívidas cresceram em todo o mundo. Isso pode ter afectado o desenvolvimento da economia real?

Nunca houve desenvolvimento do capitalismo sem desenvolvimento do crédito e de uma monetarização da economia. Na perspectiva de Marx, o crédito é uma alavanca da acumulação de capital. Isto também se vê na fase que vai de

1890 a

1929. Na China, junto à expansão capitalista cresceram os índices monetários e a participação dos mercados financeiros. Mas o crédito também potencia as possibilidades de especulação, de sobre-acumulação e de quebra. Marx trabalhava com tendências e contra-tendências. Hoje, ao contrário, toma-se só um aspecto da realidade.

Alguns sustentam que o crescimento do crédito prova o abrandamento do sistema capitalista.

A ideia de que o sistema capitalista está paralisado há 25 anos não resiste à análise da realidade. Nos últimos 30 anos a economia capitalista teve taxas de expansão superiores a 3% a nível mundial, ainda que tenham sido desiguais: o Japão vem a abrandar desde 1992 e a Europa teve um crescimento débil. Houve uma expansão geográfica do sistema capitalista, que entrou na China, no Leste Europeu e na Rússia, e um aprofundamento das relações capitalistas. O aumento da produtividade na economia dos EUA desde 1995 foi maior do que 3% ao ano. O crédito actua como potenciador de tendências do sistema e muitas vezes permite que um ciclo económico se expanda para além de suas possibilidades. Em 2001 os EUA sofreram uma recessão suave. A economia cresceu 0,8% e o crédito lubrificou os mecanismos económicos. Mas a recuperação de 2002 foi débil, com pouca criação de postos de trabalho e débil recuperação do investimento.

Nesse contexto o crédito migrou para que sectores?

Para a construção habitacional e para o consumo em geral, não para as empresas. Desde 2000 as empresas dos EUA e do G7 diminuíram sua dependência do sistema financeiro. Houve um excesso de poupança e as empresas reduziram as suas dívidas para com os bancos. Inclusive, usaram parte dessa liquidez para recomprar suas acções. Não houve uma grande expansão do investimento produtivo, mas tampouco uma dependência do capital produtivo em relação ao financeiro. As relações de dependência voltaram em meados dos anos 70. Não se pode dizer que fosse uma crise como a diagnosticada a

la Hyman Minsky

, um autor keynesiano que sustentava que as crises dão-se porque as empresas caem num sobre-endividamento e pagam dívida com dívida até que a situação expluda.

No entanto, houve uma “financeirização dos consumidores”, com a qual se amorteceu a crise de 2001.

E para além do mais ajudou a recuperação de 2002. Isso é certo. O equivoco é pensar que isso actuou isoladamente. Em

2001, a

superabundância de capital líquido e o investimento débil ocorreram porque a taxa de rendiabilidade do capital vinha-se a debilitar desde 1996/7. Esse é o fundo do problema. Produziu-se o que Marx chamava “uma pletora de capital”: capital líquido abundante, taxas de juros muito baixas (dirigidos pelo Reserva Federal e pela entrada de capitais que procuravam refúgio nos EUA) e uma super-oferta do crédito. Esses capitais líquidos foram canalizados para o sector da construção, onde encontraram um campo de expansão relativamente rápido. E acabou por explodir.

Também se diz, desde os anos setenta, que o mundo assiste a uma crise de superprodução combinada com uma crise de sub-produção.

Há dois tipos de explicações da crise. Uma diz que o problema da crise deu-se com as finanças. Outra, que a Argentina repete bastante, que se deve a uma importante desigualdade de renda, o que produziu uma crise de consumo por falta de procura. Creio que isto também não explica o que aconteceu. No último quarto de século houve um processo de “proletarização”, enormes massas da população incorporaram-se no exército de assalariados. Os casos mais flagrantes são China e Índia. Isso supõe uma ampliação de mercados, enquanto houver crescimento nos lucros. Segundo a The Economist, nos Estados Unidos 0,1% da população ganha 77% vezes mais do que 90% da população restante. Nos anos 70 essa diferença era de 1 para 20. Também na China a desigualdade cresce. Mas não é certo que se a desigualdade cresce, crescem os mercados.

Neste crescimento da economia capitalista, como se compõe o produto bruto no mundo?

No caso dos Estados Unidos, desde a recuperação de 2001 que se geraram fenómenos de sobre-acumulação de capital e de queda da taxa de rendibilidade. Esse é o pano de fundo da crise. Sobre isso o factor financeiro actuou, mas também o crescimento desproporcional no sector da habitação, entre 2001-2007. Sua participação no PIB passou de 4,2% a mais de 6%. Isso gera tensões, porque um sector está a crescer a taxas muito superiores ao resto, e num contexto em que os investimentos se mantêm débeis. Isso potenciou o sistema de crédito e deu-se uma sobre-expansão do sector em relação às necessidades da economia.

Pegando apenas o sector financeiro, o crescimento da sua participação no PIB dos EUA implicou uma mudança ou uma continuidade em relação a etapas anteriores?

Não me parece que a taxa de crescimento se tenha acelerado desde 1979-80. Entre 1895 e

1929, a

taxa de crescimento desse sector nos EUA foi superior à dos últimos vinte anos. Com a crise dos anos 30, o sector financeiro diminuiu sua participação na economia e recuperou terreno desde a década de 50, com um crescimento relativamente constante desde 1960. Não houve uma queda importante nos anos 80, ainda que as taxas de juros tenham aumentando muito: entre 1979 e 1985, o peso dos juros nos balanços das empresas subiu consideravelmente. Isso expressa parte da tese da financeirização, mas não se converteu em algo permanente.

Porquê?

Prognosticou-se que iria dar-se uma punção permanente do sector financeiro sobre o lucro empresarial, mediante a taxa de juros. E que isso debilitaria o sector produtivo e levaria ao abrandamento. Mas insisto que o peso dos juros sobre o sector produtivo tendeu a baixar. Segundo dados do Official Bureau of Economic Analysis dos Estados Unidos, entre 2006 e princípios de 2007, esse peso estava nos níveis de 1970, que era uma época keynesiana. Penso que esta é uma crise muito grave, muito profunda, mas estamos longe de uma crise como a dos anos 30.

Então acredita que não há um predomínio do capital fictício sobre o produtivo, em detrimento da economia real?

Há que se perguntar até que ponto isso é novidade. Quando houve expansão de capital no sistema capitalista, na Bolsa de Valores houve sobrevalorizações. Tradicionalmente, metade disso estaria em 10 anos deprice earning (1). No momento de euforia das bolsas, alcançou 20 ou 30 anos. Isso ajuda à instabilidade do sistema capitalista, já que provoca inflação dos lucros que desaparecem da noite para o dia, mas esses lucros não crescem à margem do trabalho produtivo.

Acredita que a crise actual reflita esse mecanismo?

Aqui estouraram activos financeiros ligados ao crédito, que se havia sobrevalorizado. O estouro reflecte que a economia estava a funcionr mal. Há que se pensar o tal do capital fictício com parâmetros; ele não deve fazer perder-nos a análise estrutural. Ao extrair a mais valia e a realizá-la nos mercados, pode haver inflações que terminam por rebentar. Mas, à medida que a instabilidade se agrava, as crises não se explicam por si mesmas.

Pode estabelecer-se alguma relação entre o excesso de liquidez e a tendência à financeirização da economia?

Esse excesso de liquidez deveu-se à debilidade do investimento produtivo. Em determinado momento, houve sectores que se acumularam excessivamente. Os neoclássicos interpretaram esse fenómeno como uma decisão da economia doméstica, das famílias, quando, na realidade, foi uma debilidade no investimento. Um exemplo é a queda de investimento na Ásia – com excepção da China – depois da crise de 1997-98. Essa massa de capital líquido pressiona sobre o sector financeiro em busca de sua valorização. Mas há que se destacar a relação de causalidade. O crescimento deste sector é consequência da acumulação de capital, ele não opera por fora do conjunto dos problemas dessa acumulação. A interpretação dos neokeynesianos – que hoje são mainstream – é a do acelerador financeiro. Quer dizer, o uso dos activos financeiros como garantias em empréstimos, até que, em determinado momento, produza-se um choque que se potencia através do mecanismo financeiro.

E qual a sua opinião sobre esse diagnóstico?

Há aspectos de realidade importantes, mas não analisa a que se deve o choque, de onde vem. É o próprio sistema de competição capitalista que obriga a um banco a competir com outros para oferecer mais rendibilidades. Se não os ligamos aos problemas de fundo, não entendemos por que essas especulações podem explodir numa brutal crise financeira, que nem sempre afecta a economia. Por exemplo: o crash de Wall Street de 1987 não se tornou uma crise global e foi a segunda grande queda da bolsa dos Estados Unidos.

No encontro do G20 propôs-se uma maior regulação dos mercados como forma de sustentar a situação económica. Crê que essa seria uma solução?

No G20 a regulação dos mercados foi defendida como uma grande questão para depois da crise. Hoje a discussão é até que grau há de ter-se intervenção estatal e se medidas proteccionistas serão ou não aplicadas. Todo mundo pede para que não haja medidas proteccionistas mas, no fundo, muitos aplicam-nas. Sobre isso gostaria de fazer duas reflexões. Os mercados financeiros e capitalistas pressionam para afastar as regulações. As regulações da Basileia estabeleceram que os bancos deviam ter certo ratio de capital em relação a sua carteira de activos. Mas os bancos criaram “Sociedades de Propósitos Especiais” (espécie de fideicomisso) para armar suas operações por fora do balanço e, assim, comprar papéis que essas entidades emitiam.

E a segunda reflexão?

Lenine dizia que as premissas estavam certas, mas havia que se pensar em quem as iria aplicar. No G20, defendeu-se que o FMI deve retomar o poder de regular. Esse organismo está governado pelas grandes potências, os grandes banqueiros e o capital internacional. Vai responder a esses interesses. É um controle dos altos comandos do capital para evitar desequilíbrios. Não há controlos em abstracto.

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In: Página 12 de 17.Maio.2009, suplemento Cash

Tradução: Katarina Peixoto para o Carta Maior (com posteriores adaptações ao português europeu)

(1) Ratio Price Earning é um indicador (normalmente designado por P/E ou PER) de análise do valor de uma acção. É a medida estabelecida entre o preço da acção e os lucros das empresas. Quanto mais elevado for o seu valor, mais cara deverá estar a acção e vice-versa. Exemplo: se a Empresa X estiver cotada a € 60 por acção e os seus lucros forem de € 3 por acção, o seu PER é de 20 (60/3). Isto significa que os investidores estão a pagar € 20 por cada € 1 de lucros da Empresa X. Esta relação é também conhecida por stock multiple, significando que a Empresa X está a negociar num múltiplo de 20 vezes os seus lucros. Este é um indicador muito utilizado pelos analistas e um dos mais conhecidos dos investidores. Na verdade, é muito frequente ver na imprensa a referência a uma acção como cara ou barata apenas por referência ao PER. O PER tem limitações e devem ser conhecidas do investidor, de modo a que não se tomem decisões apenas com base nele.
N.de T. Com http://www.analistafinanceiro.com/fiscal-financeiro/o-price-earnings-ratio-pe-ou-per/
Fonte: Mocambique para todos

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