Monday, 30 March 2009

Violência doméstica – uma construção social por desmistificar

Por Sara Jona*


À Maria José Artur, minha antiga professora de Antropologia Cultural, pela abertura com que desvendou o mito em torno das diferentes leituras do anteprojecto da lei contra a violência doméstica, porque aquela não foi criada para dizimar o género masculino.




Vi anunciada uma palestra sobre a discussão do anteprojecto da lei contra a violência doméstica, a realizar-se a 26 de Março de 2009. Essa reunião era organizada pelo CEMO – Centro de Estudos Moçambicanos e Internacionais. O assunto interessa-me e lá fui, mas ficou-me um “nó na garganta”, porque não pude intervir. Tive que sair, por motivos profissionais.
Escrevo estas notas após a palestra, numa semana em que tenho andado às voltas com dois livros que leio, quase que de forma desalmada: ora leio um, ora leio outro. Refiro-me às obras: O Retorno do Bom Selvagem: uma perspectiva filosófica-africana do problema ecológico de Severino Ngoenha e A letra, a sombra e a água: ensaios e dispersões, de Francisco Noa. Encontrei semelhanças, no tipo de reflexão, entre a obra de Ngoenha e um texto de Noa, embora o primeiro aborde questões ecológicas (sacralidade versus mecanização da natureza) e o segundo questões culturais.
Ambos falam sobre o relativismo cultural (o que parece “anormal” para uns, para outros é “normal”- natural) e questões da alteridade (o direito que me assiste em ser diferente – na raça, na cultura ou na forma como me relaciono com a natureza, é o mesmo que assiste o outro), o que quer dizer que não deverá haver superioridade de direitos e liberdades para uns seres humanos e não para outros.
Em síntese: aqueles autores apelam à necessidade de mudança no ethos social, especialmente, na forma como olhamos para o outro e como agimos perante as diferença de raça, cor ou cultura de outras pessoas. Ambos afirmam que a sociedade deve se recriar, se reinventar e desmistificar os mitos sócio-culturais criados, sob pena de não se sobreviver ou de nos tornarmos seres humanos intolerantes.
Todo este intróito é para me referir ao que eu gostava de ter dito, na palestra a que me referi anteriormente. Para mim, a violência doméstica é uma construção social criada por uns seres humanos, para dominar os outros. Esses seres humanos (homens), criaram o mito de superioridade perante as mulheres, tal como os europeus, baseados em teorias, criaram o mito da superioridade de uma raças sobre outra (dos brancos sobre os negros). Se todos nos perguntarmos de que forma ou qual será a explicação científica para essa essa superioridade, de certeza não encontraremos alguma.
Há diferenças entre os seres humanos, sim. Na cor da sua tez, no sexo e na constituição física mas, essa diferença em nada determina a intolerância de uns sobre os outros. São suposições criadas e que precisam de tempo para serem esclarecidas.
Do que há memória, na civilização Grega, segundo Gustav Le Bon, no seu livro The civilization of Arabia, as mulheres eram consideradas seres de terceira categoria. Ainda na perspectiva do mesmo autor, na cultura Hindu, considera-se, por lei, que as mulheres são piores que as cobras venenosas e do que as calamidades naturais. No seu livro Caesar and Christ, Vil Durant refere que em Roma, se uma criança fosse deformada ou do sexo feminino, o pai tinha permissão, pelo costume, para expô-la à morte. No Cristianismo, atribui-se à Eva o pecado original e, consequentemente, a responsabilidade pelos pecados da humanidade. Perante este quadro cultural, antigo, fica claro que a protecção da mulher ou a forma como ela é vista é um mito que precisa de ser desconstruído.
Muito recentemente, correu pela folha de São Paulo a triste notícia de uma menina de 9 anos violada, pelo padrasto e excomungada pelo arcebispo de Recife e Olinda, por ter feito um aborto de gémeos – fruto dessa violação. Estamos perante um facto de violência doméstica em que, à priori, o padrasto se saiu “impune” (apenas preso por suspeita de estupro) e uma criança (mulher) ficou marcada por toda a vida.
Serão factos como os narrados acima que nos permitem, não só, defender a necessidade de existência de uma lei, mas também a necessidade de haver discriminação positiva, onde os seres mais fracos, ou considerados inferiores, devam ser cada vez mais protegidos.
Tocando directamente no anteprojecto da lei contra a violência doméstica em Moçambique, a discriminação positiva deverá ser feita com base na defesa dos condicionados à situação de mais fracos, sem, contudo, tal como alguns círculos defendem, querer dizer que a lei irá servir para dizimar o género masculino.
No entanto, tal como a maioria dos fenómenos sociais, a violência doméstica levará o seu tempo para ser um dado adquirido. Muito tempo se passará até que sejam estabelecidos os desejos preconizados no anteprojecto da lei contra a violência doméstica em Moçambique.
A título de exemplo, do tempo que se leva para se estabilizar alguns fenómenos, poderíamos nos perguntar, há quantos anos é que a auto-estima dos negros foi ferida no seu âmago, ao ponto destes se sentirem seres de segunda categoria, perante os brancos? Há muitos anos, com certeza, mas as lutas para o equilíbrio na forma como olhamos uns para os outros também está a levar anos.
Não desejo, de forma alguma, que a questão da violência doméstica, ou de qualquer outro tipo de discriminação, leve mais um minuto para estancar, mas tenho consciência de que precisaremos de muito esforço, muito tempo e muitas lutas e muito trabalho de consciencialização. A este propósito vale a pena “parabenizar” todos os grupos de pessoas (mulheres e homens: WLSA, HOPEM, Fórum Mulher, Graal Moçambique, entre outros) que, no seu dia-a-dia, em diferentes frentes e de diferentes maneiras, dedicam o seu tempo pelo fim deste mal. É uma luta que vale a pena fazer, mas valerá ainda a pena se for de toda a sociedade.
Quer dizer que, mais do que criticar e trabalhar para o fim da violência doméstica ou para a mudança na atitude de olhar o outro, (como o mais fraco e, por isso, sujeito à violência), o nosso trabalho conjunto será o de trabalhar as crenças que temos. Temos que partilhar o conhecimento de que os seres humanos são iguais e não existe fundamento algum para a superioridade de uns sobre os outros.
A título exemplificativo da necessidade dessa partilha, vale a pena questionarmo-nos quantas mulheres, deste Moçambique, não acreditam que, para terem sustento, para se manterem nos seus lares e para cuidarem dos seus filhos, devem sujeitar-se à humilhações, porque o homem tem o direito a usar a sua força como quiser e bem entender e o significado dado a esse acto de violência é entendido, não só como de poder, mas como um acto de amor? Quantos homens deste país julgam que, para se sentirem amados e respeitados no seu ego, deverão submeter as mulheres aos seus desejos, desde os mais absurdos aos mais assoberbados?
A questão, a meu ver, deverá ir para além da aprovação de uma lei. Isto porque, em Moçambique, quantidades inúmeras de documentos e muitas boas leis ou estudos de viabilidade existem, mas são “letra morta”. Por causa disso, ao que me parece, é urgente a aprovação da lei, mas mais urgente ainda é o trabalho de consciencializar os milhares de homens e mulheres que vivem na crença de que existem seres humanos superiores aos outros.
Retomando o pensamento de Ngoenha e de Noa, é importante e urgente que a nossa sociedade se reinvente, se recrie e desmistifique os mitos na forma como os seres humanos olham uns para os outros, isto porque, tal como mostraram os exemplos da forma como as diferentes culturas olham para a mulher, existe ainda o mito de que a mulher é um ser de segunda categoria e, por isso, sujeito à domesticação pela força.
Por outro lado, enquanto levarmos 9 ou mais anos para aprovar uma lei que proteja os seres humanos contra a violência doméstica, enquanto as mulheres forem apenas consideradas números – “género”, para se preencherem quotas nas instituições, nenhuma atitude ou comportamento humano irá automaticamente zelar pela mudança social.

*Docente e dinamizadora literária. saralaisse@yahoo.com.br

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