Thursday, 13 November 2008

"MANDELA TEM ORGULHO DE OBAMA"

FRANCISCO ALMEIDA LEITE e PATRÍCIA VIEGAS
Graça Machel. A activista de direitos humanos e mulher de Nelson Mandela, que ontem iniciou em Lisboa uma visita de três dias a Portugal, aplaude a vitória de Barack Obama nos EUA e até vê algumas semelhanças do Presidente eleito com o líder histórico do ANC. A antiga primeira dama de Moçambique e da África do Sul conta ao DN como encarou e ultrapassou a morte de Samora Machel

Que memórias guarda da sua vida em Lisboa? Estudou e licenciou-se cá.

Vivi na Alameda das Linhas de Torres, 122. Estava na zona do Lumiar, era muito conveniente porque ia a pé para as aulas. Foi um momento muito interessante porque abriu os meus horizontes, estava com os estudantes das outras colónias. Fiquei a saber como são os portugueses.Uma coisa era o sistema político português, na altura um sistema fascista-colonialista, e outra coisa, diferente, é o povo português.

Em que momento conheceu o seu primeiro marido, Samora Machel?

Na verdade, conheci Samora em Moçambique. Foi um conhecimento distante. Quando estive cá a estudar juntei-me a uma pequena célula clandestina e nós começámos a comunicar com Dar-es-Salam através de Jacinto Veloso. Ele estava baseado na Argélia e de lá ia a Paris. Samora tornou-se, nessa altura, o meu líder, enquanto estava aqui. Quando se decidiu que eu tinha que sair e cheguei ao campo de treino em Nashigwea, ele estava lá. Foi aí que o conheci.

Era um treino militar intenso?

Sim, sim. A primeira coisa que tínhamos que fazer era o treino político-militar. Fiz em Nashigwea e depois fui para o interior. Para as zonas libertadas.

Foi fazer trabalho político?

Sim, na altura estávamos prestes a celebrar os dez anos de luta armada (em 1974). A direcção da Frelimo tinha decidido que tínhamos que fazer uma recolha com a história dos camaradas, "estórias" de vida. Dizerem o que era o colonialismo para eles, como tinham tomado consciência do que era, o que tinham que fazer, como se juntaram à Frelimo.

Daí transita para ministra da Educação, após a independência.

Mais tarde, quando saio do interior sou colocada na nossa escola secundária a poucos quilómetros de Dar-es-Salam. Fui directora-adjunta da escola e, entretanto, dá-se o 25 de Abril aqui e meses depois começam as negociações de Lusaka. Eu não estive no primeiro encontro de Junho. Eu só estive nas chamadas negociações clandestinas, que tiveram lugar entre Junho e Setembro, em Dar-es-Salam. Do lado português eram dirigidas por Melo Antunes.

Quando foi ministra defendeu a educação para todos os moçambicanos. Hoje em dia já se chegou a esse patamar?

Não chegámos lá. Nós fizemos um grande esforço de mobilização do povo para a expansão da rede escolar. Era um dos elementos fundamentais do significado da independência. Só que nós tivemos constrangimentos, os manuais eram insuficientes, não havia infra-estruturas, a rede escolar era pequena. Mas o povo construía escolas, desde que houvesse paredes e um tecto fazíamos escolas e mobilizávamos os professores. Foi um período de grande entusiasmo popular. Porque é que ainda não conseguimos dar educação às crianças? Porque tivemos aqueles anos todos de conflito. 16 anos e 45% da nossa rede escolar ficou destruída. A partir de 93/94 fez-se um grande esforço de reconstrução. Mas ainda não podemos dizer que toda a criança está numa escola primária, longe disso.

Com a morte de Samora Machel, como é que encontrou forças para continuar a luta?

Quando se é confrontado com uma situação destas, não se planeia: como é que eu vou sair disto? É uma luta diária, de lidar com o sentido de perda. Não vou negar, houve períodos de um grande desânimo, mas duas coisas importantes ajudaram-me: primeiro, eu tinha filhos, tinha a obrigação de protegê-los e de lhes dar um lugar onde se sentissem seguros. Isto qualquer mãe instintivamente faz, não sou uma pessoa extraordinária. Tinha também lealdade a Samora. A partir de uma certa altura, disse a mim própria: ele não havia de querer ver-me a desistir. Há causas que nós abraçámos juntos e estávamos "engajados" nessas causas. Ele ia querer que eu continuasse, à minha maneira e muito mais modestamente, com certeza. Mas tinha que fazer alguma coisa.

Apoia uma nova investigação sobre a morte de Samora, como defendem alguns?

Sempre, até que a verdade venha ao de cima. Nós, como família, nunca desistimos. Enquanto este assunto não se esclarecer não podemos ter tranquilidade.

Como é ser a primeira dama dos dois países, como foi de Moçambique e da África do Sul?

O problema é que eu, realmente, nunca fui primeira dama de nenhum desses países. Tive a sorte de me casar com pessoas que me deixaram fazer o meu trabalho de activista. Não sou profissional de nada. Sou activista social. Nunca exerci aquelas funções de primeira dama.

Protocolares...

Sim, sempre fui com eles às cerimónias, mas o meu dia-a-dia não era determinado pela função de primeira dama. O meu dia-a-dia, enquanto estive casada com Samora, era ser ministra da Educação. E digo-lhe mais: isso ajudou-me muito. Se eu tivesse sido primeira-dama, no verdadeiro sentido da palavra, quando ele morreu eu teria ficado desempregada. Com o Mandela, eu também saía com ele...

Mas também tinha obrigações sociais...

Já as tinha, no meu país, internacionalmente. Mas repito que tive a sorte de eles me permitirem ser eu própria. Nunca interferiram.

Como viu a eleição de Barack Obama para Presidente dos EUA. Já esperava?

Não, não. Eu não diria a verdade se dissesse que desde o princípio estava à espera. Confesso que foi ao longo da campanha que eu vi: ele tem possibilidades reais. Eu também estava entre as pessoas que perguntavam: Será que os EUA estão preparados para ter um presidente afro-americano, de primeira geração de imigrantes? Porque o pai dele era queniano, não era daqueles que já vêm do tempo da escravatura. E, aliás, mesmo entre a comunidade de afro-americanos houve alguns que achavam que ele não os representava suficientemente porque não vinha daquelas gerações. Mas acho extraordinário que ele, ao longo destes meses, conseguiu criar a confiança de muita, muita gente nos EUA e no mundo. E eu vejo uma espécie de uma transferência de uma geração. Mandela foi o homem de raça negra que conseguiu criar um consenso mundial. Mandela é estimado, respeitado em todo o mundo, independentemente da sua origem. E eu vejo essa passagem de Mandela para Obama.

Mandela ficou satisfeito com a eleição de Obama?

Sim, muito satisfeito. Ele, no fundo, também tem essa satisfação e esse orgulho de dizer... Vamos lá admitir, os assuntos de raça ainda não estão tratados nas nossas sociedades, não estão. E esses dois homens, ligados a um Martin Luther King, conseguem representar valores universais com o quais todos nos identificamos. E quando isso acontece não estamos a pensar na raça que eles têm. Mas no valores que eles representam.

Falou na capacidade que Mandela tem de gerar consensos. Mas quando olhamos para as lutas internas no Congresso Nacional Africano (ANC) e para alguns presidentes africanos que procuram perpetuar-se no poder perguntamos se o legado de Mandela não estará em perigo?

O legado de Mandela não está em perigo. Os processos democráticos têm dentro de si estas lutas internas. No caso da África do Sul é verdade que há lutas internas no ANC, aliás acabou de haver uma cisão, mas isso aconteceu de uma maneira que apesar de dramática não foi violenta. Um dos maiores legados de Mandela é a transição de uma situação intratável de apartheid. Toda a gente estava à espera que fosse haver um banho de sangue. E ele conseguiu que a transição se desse sem violência e sem sangue. Mesmo a cisão no ANC não provocou violência. Eles debatem e continuam a debater. E isso é salutar numa democracia. O que vai ser o novo partido e o que vai conseguir? Isso é irrelevante, porque eles têm o direito de discordar, têm o direito de se organizar, associar, como qualquer um. Além da afirmação dos ideais, dos valores que eles dizem trazer, importa ver se eles vão conseguir afirmar-se. Penso que não devemos perder de vista que uma sociedade democrática e uma sociedade de abertura é uma sociedade em que as pessoas têm o direito de se exprimir. E se têm esse direito que se definam, através das ideias, nunca através da violência. E é por isso mesmo que, na minha opinião, o legado dele não está em risco.

O tema da sua conferência de hoje [ontem] são as relações Europa-África. Quase um ano depois da segunda cimeira UE-África, que decorreu em Lisboa, o que mudou efectivamente nas relações entre os dois continentes?

Penso que se estabeleceu uma relação mais institucionalizada entre África e a Europa. Que não existia. Cada um dos países africanos, uns viravam-se para França, outros para Portugal, outros para Inglaterra, mas não havia esse mecanismo entre os dois continentes a falarem como tal. E isso é interessante. Há uma relação institucionalizada. Creio que devemos acarinhar e cultivar essa relação institucionalizada como espaço de respeito mútuo e de diálogo.

De igual para igual...

Exacto. E isso não existia.

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