Monday, 24 November 2008

Assunto: E se Obama fosse africano? - Por Mia Couto

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de

uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas

corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu

era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson

Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho

de dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas

um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia,

liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão:

habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à

rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos

respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama

não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos

de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da

América não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos

recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem

testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas

reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos

chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes

sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão

diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros,

não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa

de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam

desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice

Nganang, intitulado: " E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu

colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas

agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse

à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de

explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das

Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato

para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para

voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a

permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão,

39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no

Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de

presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente.

Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do

veredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do

partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como,

por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria

preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África

não toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos

países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as

portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de

imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado,

no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente

"descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou

por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse

tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas,

o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de

Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá

livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato.

Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio

rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver

nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras

fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico

africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente

americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros",

dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos

moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de

agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os

advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas - tantas vezes

no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício

mortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa

de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial

degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode

negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos.

Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em

infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos

devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a

favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de

que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de

construir uma dessas condições à parte.

Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam

impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da

governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as

pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a

vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de

África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de

Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que

conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que

nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou

conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários

internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia

da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por

guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de

terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política.

Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar

para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso

continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós,

africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e

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