Tuesday, 14 October 2008

A OPINIAO DE ELISIO MACAMO

Os nossos compatriotas zangados (Concl.): Entrar no mato

REGRESSO às palavras onde tudo isto começou. Pertencem a Fernando Couto. Por mais que te isoles/no seio da floresta/a solidão não será/tua companheira. Foi aqui onde começámos. A solidão não será jamais nossa companheira, mas há sempre maneiras de estarmos sozinhos connosco próprios. Alguns de nós conseguem fazer isso. Os nossos compatriotas zangados. A ira é a sua companhia. A razão, o estatuto de vítima, a independência e o espírito de manada é tudo quanto precisam para não estarem a sós. Curiosamente, não são muitos. Mas como fazem muito barulho dão a impressão de serem muitos. São talvez por aí uma dúzia que fizeram da indignação legítima que qualquer pessoa decente deve sentir pelo que corre mal sua razão existencial. Eles vivem do que anda mal e receiam o dia em que não terão mais motivos para se indignarem. Talvez seja por isso que se chateiam com os que procuram peso e medida na crítica.

Já escrevi em tempos neste mesmo jornal, no governamental Notícias, que pior do que o governo são os nossos críticos. Não tenho razões para rever essa opinião. Um governo sem esfera pública responsável, sem uma massa crítica que se interessa por assuntos e ideias, é um governo que está mal. Está sozinho a remar sem rumo em águas turbulentas. Só ouve o Rumor de água, mas não enxerga nada. Para ser responsável um governo precisa de uma esfera pública que o interpela crítica, mas patrioticamente. Uma esfera pública que não fica contente quando alguém de fora diz que temos um governo de ladrões e sente rigozijo por outros confirmarem a nossa má opinião sobre aquilo que, no fundo, é nosso.

O nosso país tem muita gente decente que não está de acordo com muita coisa. Tem ainda mais gente que acha que o país está à deriva. Isso é sinal de indignação e indignação é, num primeiro momento, sinal de compromisso com o país. Justamente porque o país não nos é indiferente ficamos indignados. Aí cada um de nós é chamado a interpelar as coisas criticamente. E fazer isso não significa apenas ligar o botão “profeta Jeremias” e queixar-se apenas. Está tudo mal, são corruptos, apoiam amigos ditadores, viva os mortos que em vida repudiaram Mugabe, cuidado chineses, querem nos silenciar, cuidado vem aí a Procuradoria da República, ladrões, corruptos outra vez, oportunistas! Interpelar as coisas criticamente significa estar aberto a outras maneiras de ver as coisas, estar ciente de que a nossa indignação não é suficiente para nos dar razão nas coisas que vemos, enfim, que um governo de corruptos pode não ter ladrões no seu seio, nem ter corruptos, e até estar tão interessado no desenvolvimento do país como nós. Por que não?

Vem-me à memória um reparo útil feito por Richard Rorty, um filósofo americano já falecido, que dizia que a verdade não existe para além do que nós dizemos. E por causa disso, nós é que nos enganamos enquanto que o mundo se mantém impávido e sereno. Não é preciso estar de acordo com a epistemologia de Rorty para reconhecer a utilidade do seu reparo para a estrutura do debate na esfera pública. Ele concluiu, a partir da sua rejeição da noção de verdade, que o nosso objectivo como indivíduos deve ser de participar na formulação das crenças que reforçam a nossa solidariedade como membros de uma comunidade. Creio que podemos fazer isso sem termos de prescindir da nossa prerrogativa, como pessoas dotadas de um sentido moral, de ficarmos indignados pelo que vai mal. Penso que a nossa indignação ficará melhor ainda se a usarmos como elemento de coesão e integração do país. Vamos nos zangar, mas com medida, por favor.

A Ana Mafalda Leite fecha o seu prefácio à antologia de Fernando Couto com as seguintes palavras: Este livro junto à fronteira de todos nós. Ela, melhor do que eu, sabe o que quer dizer com isto. Seja o que for, a sua profundidade não depende, de certeza, do que ela acha estar mal ou bem neste país. As suas palavras são o princípio e o fim do que ela nos quer dizer. Assim, junto-me também à essa fronteira de todos nós e convido os nossos compatriotas zangados a se aproximarem de nós. Fernando Couto já avisou: Por mais que te isoles/no seio da floresta/a solidão não será/tua companheira.

Em changana entram no mato os malucos.

* ELÍSIO MACAMO - Sociólogo/Nosso colaborador
Maputo, Terça-Feira, 14 de Outubro de 2008, In Notícias

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