Friday, 31 October 2008

Canal de Correspondência

Por Associação Moçambicana de Defesa das Minorias Sexuais: Carta à Secretária Executiva do CNCS, Dra. Joana Mangueira

Profundo desacordo

Maputo (Canal de Moçambique) - A LAMBDA, Associação Moçambicana de Defesa das Minorias Sexuais (em formação), saúda o Conselho Nacional de Combate ao SIDA (CNCS) e aproveita esta ocasião para expressar o seu profundo desacordo com declarações recentemente proferidas por um alto funcionário dessa instituição. De acordo com a AIM, de 26 de Outubro de 2008, o Sr. Secretário Executivo Adjunto do CNCS, Dr. Diogo Milagre, dirigindo-se ao II Encontro Nacional da Juventude, em Cheringoma, afirmou que a homossexualidade contribui para a disseminação do HIV/SIDA e apelou ao combate às relações bissexuais, pois estas levam a relações descontroladas.
Em primeiro lugar, gostaríamos de reafirmar alguns factos. É consenso que a forma principal de transmissão do HIV são os actos sexuais sem protecção, sejam eles heterossexuais, bissexuais ou homossexuais. Em Moçambique, como na maioria dos países africanos, a principal forma de transmissão são os actos sexuais sem protecção, entre homens e mulheres. Provavelmente, a segunda causa será a transmissão vertical da mãe para a criança, durante a
gravidez, parto ou amamentação. Dado que as relações sexuais entre as pessoas do mesmo sexo, com ou sem protecção, são uma forma minoritária de
relações sexuais em Moçambique, ou em qualquer outro país do mundo, a transmissão do HIV através do sexo sem protecção entre duas pessoas do mesmo
sexo é estatisticamente pequena, quando comparada à transmissão heterossexual, no âmbito da epidemia generalizada que assola nosso país.
O ponto que queremos aqui vincar, em primeiro lugar, é que não é a orientação da relação sexual que é problemática na transmissão do HIV, mas sim se ela ocorre sem protecção. Este é um princípio que deve ser por demais conhecido por alguém que ocupa o cargo de Secretário Executivo Adjunto do CNCS há vários anos. Se não é do seu conhecimento, então é grave e preocupante.
Tentar travar a transmissão do HIV combatendo certo tipo de sexualidade é o mesmo que evitar a transmissão entre homens e mulheres combatendo as relações sexuais entre homens e mulheres. Ou combater a gravidez para evitar a transmissão vertical da mãe para a criança. Não faz sentido!
Em segundo lugar, num país onde a principal forma de transmissão do HIV é o sexo heterossexual sem protecção, a singularização das relações bissexuais,
para além de irrelevante pelos factos e argumentos acima apresentados, é uma tentativa inaceitável e lamentável de estigmatização, preconceito e
perseguição contra a comunidade homossexual, tentando fazer dela bode expiatório, e vai contra todos os princípios, documentação e literatura sobre o HIV/SIDA das Nações Unidas e da comunidade científica internacional.
As relações sexuais "múltiplas, difusas e descontroladas" em Moçambique, a que o Dr. Milagre fez referência, são muitíssimo mais comuns entre os que praticam o sexo heterossexual, do que em qualquer outro grupo. O fenómeno cada vez mais comum das "casas 2, 3, etc." (conhecido na linguagem técnica, que é de domínio do Dr. Milagre, como Parcerias Múltiplas Concorrentes - Multiple Concurrent Partnerships) é prova disso. Mas em nenhuma altura alguém se lembrou de apelar ao combate às relações heterossexuais. De novo, está claro que o problema não está na orientação do acto sexual, mas sim nas práticas sexuais irresponsáveis, isto é sem protecção, sejam elas múltiplas ou singulares, curtas ou prolongadas, homossexuais, bissexuais ou heterossexuais.
Esta atitude do CNCS só contribui para marginalizar ainda mais um segmento da sociedade que, ainda que pequeno e minoritário, também é vítima da epidemia do HIV/SIDA e que já sofre perseguições e humilhações indescritíveis por causa apenas da sua orientação sexual.
Hoje em dia, não existe em Moçambique uma única mensagem pública de prevenção que reconheça a existência de relações entre pessoas do mesmo sexo
e que se dirija às peculiaridades da prevenção no seio deste grupo. Existem alguns programas que, timidamente, começam a dar os primeiros passos nessa direcção, mas infelizmente nenhum deles é liderado pelas autoridades do nosso país.
É responsabilidade do CNCS reconhecer todos os grupos sociais vulneráveis à exposição ao HIV e desenhar e ajudar a implementar estratégias de prevenção e tratamento no seio deles, em vez de tentar encontrar bodes expiatórios e espalhar mensagens estigmatizantes, discriminatórias e preconceituosas, sobretudo no seio da nossa juventude. Será que não chega o estigma e a
discriminação que já estão associados ao HIV/SIDA? Será que o CNCS realmente acredita que ao espalhar mais ódio e preconceito contra os homossexuais
conseguiremos estancar a epidemia de SIDA em nossa sociedade?
A comunidade científica, bem como as principais agências de cooperação técnica internacional, recomendam como mais eficazes as estratégias de
prevenção baseadas na garantia dos Direitos Humanos e que trabalhem no combate à discriminação e estigma como forma de diminuição dos contextos de vulnerabilidade que atingem os homossexuais e outros homens que fazem sexo
com homens. Somente com o envolvimento e protagonismo destas pessoas nas acções de combate à epidemia é que avançaremos para uma aceleração da
prevenção ao HIV. Antes de vê-los como "culpados" de algo, o Conselho Nacional de Combate ao SIDA deveria afirmar os homossexuais e outros homens
que fazem sexo com homens como um dos grupos mais vulneráveis à exposição ao HIV, instando os diferentes intervenientes a desenvolverem acções de
prevenção no seio deste grupo.
Perante a gravidade da situação causada pela epidemia do SIDA no nosso país, este não é o momento de apontarmos dedos, de iniciarmos caças às bruxas e levantarmos falsos problemas. Esta é a hora de darmos as mãos, juntarmos esforços, pensarmos em conjunto e enfrentarmos esta tragédia nacional unidos e como cidadãos desta pátria! A LAMBDA e a comunidade homossexual, bissexual
e trans-sexual moçambicana, pequenas e modestas, estão prontas a avançar para esta batalha e a colaborar com o CNCS para o triunfo sobre a epidemia.
Esperamos do CNCS a mesma atitude aberta, corajosa, despreconceituosa e patriótica. Maputo, 27 de Outubro de 2008

(LAMBDA)

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