Thursday, 11 September 2008

Lideranças Religiosas e Políticas: Infalíveis ou Inflamáveis?

Uma análise sobre a publicação da Carta Pastoral dos Bispos Católicos de Moçambique

Por: Raúl Chambote*
raulchambote@hotmail.com

1. Nota Introdutória
O argumento-chave desta análise centra-se na idéia de que a religião tem implicação forte na vida política, sócio-económica e cultural nos países Africanos, e Moçambique não foge à regra. Por isso, defende-se que o papel da religião na promoção da democracia, paz e estabilidade e desenvolvimento não deve ser entendido como interferência em assuntos políticos ou seculares. E mais, há necessidade premente que as instituições de ensino superior em Moçambique e as instituições religiosas de ensino abram as portas e universalizem o conhecimento de Teologia, que neste país, tem sido privilégio exclusivo de Sheikhs, Pastores e Padres, para que se renove o debate político sem se incorrer na diabolização das lideranças políticas, nem, à exclusão incoerente das lideranças religiosas. Por causa da limitação dos políticos em compreender a linguagem política da religião, o presente texto convida os Moçambicanos ao debate construtivo em torno dessa temática para a consolidação dos sucessos alcançados tanto na esfera política como religiosa para o bem da maioria.

Muitas vezes ouvimos dizer, quer dos que não pertencem a nenhuma religião quer dos que não acreditam no papel da religião, que esta não deve imiscuir-se em assuntos políticos e económicos, visto que esses são áreas exclusivamente seculares. Nos nossos dias, políticos, juristas e até algumas lideranças religiosas associam-se a esse tipo de pensamento, clamando, de facto, que questões políticas, sob a perspectiva de democratização, ou/ e esforços de desenvolvimento económico são de esfera de responsabilidade do poder temporal (Estado), e que a religião se ocupe do poder espiritual, ou melhor, conforte os fiéis. Pode ser que alguma vez esse tipo de afirmações tenham tido sentido. Contudo, essa maneira de pensamento pode desorientar as pessoas, e mais, não ajuda nem a juventude e nem a sociedade, em geral, sobretudo, quando se fala sobre processos de democratização e desenvolvimento integral de indivíduos em África e, particularmente, em Moçambique.

2. Vivemos na outra margem
Mark Lilla, no seu trabalho publicado em 2007, do qual cito e adapto-o para o contexto Moçambicano, anota que desde as revoluções Americana e Francesa ao colapso do Comunismo Soviético a questão política mundial circunscrevia-se eminentemente à problemas políticos e, que as questões que dividiam as pessoas eram: guerra e revolução, classes e justiça social, raça e identidade nacional. Quando sinais indicavam, por causa do progresso tecnológico, que os problemas que afligiram as pessoas que viveram no Século XVI estavam ultrapassados; que os seres humanos aprenderam a separar questões religiosas de políticas, situações de incompreensão teológica, paixão messiánica, conflitos de revelações, as pessoas ficam confusas e perplexas com algumas manifestações, em defesa dos cidadãos (crentes e não crentes), tanto políticas, quanto sócio-económicas, assentes em pressupostos religiosos para justificar as injustiças reais ou imaginárias com que determinado sistema político subjuga o seu povo.

Em Moçambique, desde a Independência Nacional, embora esteja legalmente estabelecida a separação do Estado e da Religião em todas as Constituições (Constituição da República Popular de Moçambique (CRPM) de 1975, artigo 19; Constituição da República de Moçambique (CRM) de 1990, artigo 9, número 3; e CRM de 2004, artigo 12, número 4), há sinais irrefutáveis de forças fora do quadro legal que impelem o Estado e a Religião, como entidades inseridas num contexto sócio-político concreto e não como pressupostos de exercício de abstração intelectual, a coexistirem pacificamente nalgumas situações, mas noutras a conflituarem-se porque tanto o Estado como a Religião procuram continuamente conquistar o poder no sentido de influenciar a conduta alheia e, a legitimidade junto das pessoas que são simultaneamente cidadãos e crentes. Sobre esse aspecto, numa outra ocasião, farei uma tentativa de análise assente na Lei 8/2003, Lei sobre Orgãos Locais do Estado e o respectivo Decreto 11/2005.

Mais antes, trago uma análise feita por um sacerdode John Flynn no seu artigo God in the Public Square, publicado aos 20 de Novembro de 2006, em Londres, pelo Forum Theos. Rowan Williams e Cormac Murphy-O'Connor (2006) comentaram que existe uma “confusão colectiva” sobre questões de fé na sociedade e avançaram que “questões de crença e fé, como seres humanos percebem o mundo, não têm sido tão importante na sociedade hodierna e/ ou têm sido erradamente entendidas. Comentadores seculares argumentam que o crescente papel da fé na sociedade representa uma evolução perigosa”, observam os dois prelados e argumentam “...tal interpretação é incorrecta” . O relatório de que cito argumenta que a fé não é apenas importante para o florecimento humano e a renovação da sociedade, mas que a sociedade só pode florescer se se der espaço a fé dar sua contribuição e enfrentar seus próprios desafios.

Não pretendo neste secção do texto descrever ou debater se a religião traz ou não coesão à sociedade, mas tentar perceber se seria possível separar religião de assuntos que são da alçada do Estado. Há alguns anos, comentava com meus colegas de carteira do Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI), sobre a manifestação religiosa dos candidatos às eleições gerais e multipartidárias de quase todos os partidos políticos de Moçambique. Os nossos comentários eram suscitados pelas imagens televisivas que os órgãos de comunicação social mostravam sobre a postura religiosa, imaginária, intencional ou real dos candidatos. Óbvio, que as reacções dos nossos debates eram tendenciosamente negativas. Que mal há nisso? Talvez, seja a nossa atitude de querer eliminar tradições e símbolos religiosos, sejam do cristianismo ou islamismo e mais grave ainda, dos símbolos das chamadas religiões tradicionais. Há coisas surpreendentes na sociedade moçambicana, na dimensão das tradições religiosas, de 1975 aos nossos dias. Não é tão fácil assim remover a religiosidade e valores numa sociedade. Num momento histórico a religião pareceu ter menos significado na sociedade, mas noutro sua relevância deixa-nos humoristicamente extasiados, quando um líder religioso benze com água benta, por exemplo, as viaturas dos vencedores do concurso televisivo Fama Show, ou quando se recorre à invocação dos antepassados nas cerimónias de lançamento da primeira pedra sobre construção de infra-estruturas públicas, ou quando os candidatos políticos se apresentam religiosamente piodosos nas igrejas, mesquitas e noutros lugares onde o conforto psicológico religioso dá-lhes sentimento assegurado de que estou-convosco-e-vós-comigo nas urnas. Vários argumentos contra o envolvimento religioso em questões públicas têm sido apresentados por analistas no mundo. Vamos tentar resumir o conteúdo do estudo já mencionado sobre a importância religiosa na esfera pública, nos seguintes termos: acusação e rebate. Acusação-(i) política é, na sua melhor asserção, a arte do possível, e, é a arena do compromisso, e a religião não se deixa comprometer. Rebate (i), muitos daqueles que estão no activo na vida pública que têm crenças religiosas são também sérios sobre a necessidade do debate e negociação. Para o caso moçambicano o compromisso que as lideranças religiosas da Conferência Episcopal de Moçambique, do Conselho Cristão de Moçambique e outras na condução do processo das negociações sobre a paz que culminou com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz, em Roma em 1992; o compromisso das instituições religiosas, Islâmicas e Cristãs na educação e desenvolvimento, robustece o rebate.

Acusação (ii), diz que o engajamento religiosamente motivado na esfera pública está orientado em volta de princípios transcendentais, as quais não dão suficiente peso às preocupações humanas. O rebate (ii) sustenta para os Cristãos, a Incarnação oferece um significado especial as preocupações humanas. Acrescenta-se que, de facto, criticismo pode ser produto duma ideologia e a história do Séc. XX demostra amplamente que as ideias ateístas são tanto quanto perigosas como as imersas em divindades. Para o caso de Moçambique os princípios postulados na Concordata e no Estatuto Missionário assinados entre a Santa Sé (Vaticano) e o Estado Português, aos 7 de Maio de 1944 (nalgumas referências pode encontrar 4 de Maio de 1940), por um lado, e as vicissitudes de políticas impopulares de 1975 até finais dos anos 1980, por outro, ilucidam esse quadro averguado de situações irrefutáveis. Tanto o religioso como o político manifesta silêncio concordante.

Acusação (iii) engajamento religiosamente motivado na esfera pública é intrinsicamente sectário e isso fractura o discurso público e exacerba tensões. Rebate-se (iii) afirmando que essa asserção não é necessariamente verdadeira, pois observa que as actividades religiosamente inspiradas podem constituir forças para o bem comum da sociedade. A defesa é discutível, pois na minha análise, para o caso de Moçambique, o pedido formal da Comunidade Muçulmana ao Estado Moçambicano sobre feriados para as comemorações do ID UL ADHA e ID UL FITRE para um reconhecimento legal e as reacções religiosamente motivadas de lideranças religiosas cristãs, convida-nos a um escrutíneo intelectual sobre o assunto posto pela acusação.

Acusação (iv) critica a religião por ser intrinsicamente inacessível no sentido de que as ideias orientadas por um sistema de crenças podem fragmentar o discurso político e alienar aqueles fora duma tradição particular. Rebate-se (iv) afirmando que o debate na praça pública não é de alguma forma um tipo de discurso perfeitamente neutro, que pode ser danificado pela religião. Ademais, os crentes religiosos são mais que capazes em usar os argumentos e princípios que são de aplicação universal. O rebate é ilucidativo, pois para o nosso caso a maioria das lideranças religiosas que eventualmente usam tais discursos e princípios vivem simultaneamente “nas duas margens”, portanto sabem um pouco de tudo tanto duma como da “outra margem”.

Acusação (v), argumenta que Deus e César não tem nada a ver um com o outro, portanto a religião não deve imiscuir-se em assuntos da esfera pública. Rebate-se (v) que o estabelecimento do Reino pregado por Cristo é tanto quanto assunto da arena pública como questão privada. A religião não tem apenas um papel legítimo a desempenhar como também joga um papel importante na manutenção do equilíbrio político. “A crença na provisionalidade e impermanência do poder político, a qual formam a base do liberalismo político é legado do Cristianismo ao mundo moderno. Quando os Estados esquecem que não tem poder absoluto sobre os seus cidadãos podem facilmente cair no erro de totalitarismo que desumaniza as pessoas”. Este pode ser o erro no qual o secularismo teofóbico pode cair.

3. Lideranças Políticas e Religiosas: Infalíveis ou Inflamáveis?
Voltemos então para o quadro inicial que serve os propósitos deste texto. Por enquanto para tornar esta reflexão mais elucidativa socorrer-me-ei de dois extractos politicamente incensados pela linguagem religiosa: (i) o Presidente Mahmoud Ahmadinejad do Irão, no dia 9 de Maio de 2006, enviou uma carta aberta ao Presidente George W. Bush. O conteúdo da carta era político mas a linguagem era daquela da divina revelação. Após uma incursão sobre os constrangimentos que a política externa americana apresenta ao mundo, Ahmadinejad escreveu: “ se Profeta Abraão, Isaac, Jacob, Ismael, José ou Jesus Cristo (a paz esteja com Ele) estivessem connosco hoje, como eles haveriam de julgar tal comportamento?” Essa não foi uma pergunta retórica. “Fui informado que Sua Excelência segue os ensinamentos de Jesus Cristo (paz esteja com Ele) e acredita na promessa divina da regra de rectidão na Terra”, Ahmadinejad, continuou a recordar seu homólogo crente que “ de acordo com os versículos divinos, todos somos chamados a adorar Único Deus e seguir os ensinamentos de divinos Profetas.” Portanto, há aqui uma chamada sagrada, na qual o Presidente Americano é convidado a agir em conformidade com os versículos divinos. Depois, segue uma profecia ameaçadora: “Liberalismo e o estilo de democracia ocidental não têm sido capazes em ajudar que se alcance os ideiais da humanidade. Hoje, esses dois conceitos fracassaram. Aqueles dotados de introspeção podem já ouvir os sons quebradiços e queda da ideologia e pensamentos do sistema democrático liberal...quer gostemos quer não, o mundo gravita em torno da fé em Todo-poderoso e justiça, e a vontade de Deus prevalecerá sobre todas as coisas.”

Outro (ii) extracto da Carta dos Bispos com sabor político-religioso à Moçambicano da inspiração divina refere que “Comprometidos com a justiça, reconciliação e paz (...) para que todos tenham a vida em abundância (Jo. 10, 10)” os Bispos Católicos, sem cessar anunciam “Jesus Cristo como Caminho, Verdade e Vida” e mostram “extrema solicitude pelo destino temporal e escatológico” ao dirigirem-se aos cristãos, homens e mulheres de boa vontade de Pátria Moçambicana e outros. E continuam os Bispos, “Com respeito, mas também com firmeza, queremos testemunhar e proclamar a razão de ser da esperança que há em nós (1Ped. 3, 15) e que nos leva a contar com todos como parceiros na construção da civilização do amor cuja base é o respeito ao homem todo, na justiça, na verdade e na paz (...) como pastores do povo de Deus, na qualidade de Bispos da Igreja Local de Moçambique, em que fomos investidos pelo Espírito Santo (Cat. I.C 861: 3758,1) através do mandato apostólico da Santa Sé (CIC 377ss), faz com que nada do que acontece com os homens e as mulheres aos quais fomos enviados a apascentar possa não encontrar eco nos nossos corações de Pastores (65,1)”. E asseguram, que “é nessa base, que, fazendo leitura dos sinais dos tempos presentes, na realidade social em que se encontra o rebanho que nos foi confiado, vimos por meio desta carta pastoral, identificar no momento actual aquilo que, (...) constitui sinais de esperança e de preocupação, luzes e sombras do tecido social do nosso País, os quais buscam de nós pastores, uma palavra de estímulo, de encorajamento, nos casos de denúncia profética e de correcção fraterna noutros e de orientação na sua generalidade”.

Lidos os dois extractos, identificamos a linguagem da teologia política. Há milénios de anos esta era a língua que seres humanos usaram para expressarem seus pensamentos sobre a vida política. Nos nossos dias milhares de indivíduos ainda procuram trazer a autoridade de Deus sobre toda a vida humana, económica inclusive, e os tais podem até ter razão. Disso, existe um testemunho académico expresso numa dissertação por Dowyvan Gabriel Gaspar em 2006, entitulada “É Dando Que Se Recebe: A Igreja Universal do Reino de Deus em Moçambique e o Negócio da Fé”, que apresenta Deus como ente que resolve nossos problemas económicos ao apregoarem a chamada “Teologia de Prosperidade” para assegurar fortuna à seus crentes.

Para entender esses extratos precisamos interpretar a linguagem da teologia política, todavia, este é o trabalho mais penoso e árduo com que os académicos moçambicanos, políticos e os praticantes das religiões tem se deparado por não dedicar energia suficiente para investigar assuntos dessa natreza. Ler uma carta como a de Ahmadinejad, ficamos mudos e estupefactos como viajantes-excursionistas que se deparam com inscrições em hieróglifos. Ao ler uma Carta Pastoral dos Bispos, com o conteúdo político, ficamos todos em alvoroço pressuroso ou em diabolizar a vida política, ou em consentir afirmações exclusivistas em reverência genuflexória de que o mal precisa ser extirpado da nossa sociedade.

O problema é nosso compatriotas e, não é nem de Ahmadinejad e nem dos Bispos Católicos de Moçambique e muito menos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Diz Mark que “há pouco de mais de dois séculos começou-se acreditar que o Ocidente estava na linha correcta em direcção a democracia secular moderna e que as outras sociedades, uma vez colocadas na tal linha correcta, seguiriam inevitavelmente”. Fukuyama, no seu livro The End of History and The Last Man, comunga com essa ideia. Apesar disso não ter acontecido, ainda mantém-se a implícita fé num processo modernizador e culpam-se atrasos de desenvolvimento às circunstâncias extenuantes como a colonização, a pobreza, a corrupção, a má governação e a outros problemas. Essa assumpção dá forma como as pessoas encaram a teologia política, tanto a Islâmica assim como a Cristã, como um atavismo que requer análise psicológico ou sociológico, mas não um exercício intelectual sério. As lideranças religiosas, mesmo se são pessoas com formação académica e profissional invejáveis, temo-las, muitas vezes, como líderes frustrados, representantes irracionais de pessoas frustradas ou de segmentos irracionais da sociedade. Eis o que Mark nos acusa ao dizer que “...vivemos na outra margem do rio”. É nesse sentido que sugiro que subamos a canoa e vamos à outra margem.

Quando observamos aqueles que estão na margem oposta do rio ficamos embasbacados, visto que temos memória distante do que seria pensar, cantar, ou falar como fazem. Todos nós deparamo-nos com as mesmas perguntas de existência política, mas a forma como as respondemos é que se tornou algo estranho. Numa margem as instituições políticas são concebidas em termos de autoridade divina e redenção espiritual, mas noutra, não são. Nisso Robert Frost, no seu trabalho publicado em 2003, dizia “...faz muita diferença”. Compreender essa diferença é a tarefa intelectual e política mais urgente, nos nossos dias, sobretudo na nossa sociedade moçambicana, que discute as coisas, às vezes, em última hora e em alvoroço. Outras vezes falamos quando devíamos estar calados e reflectir com profundidade os problemas; publicamos duma forma badalada certos assuntos quando devíamos sorver o conteúdo para o exercício útil da actividade dos meios da comunicação social. O caso da publicação das caricaturas do Profeta Mohamad (SAW) e da Carta Pastoral dos Bispos de Moçambique, por alguns órgãos de comunicação social em Moçambique, ambas fora do tempo embora se reconheça a relevância da informação publicada para dar a conhecer as pessoas o que estava a acontecer e o que foi escrito “na outra margem”, revela um pouco disso. Embora a comunicação social ocupe o respeitado e digno quarto poder nas sociedades que se pretendem modernas na actualidade não deixa de ser preocupante o seu posicionamento em questões fundamentais da vida política e religiosa dos cidadãos. Analisemos o seguinte humor que li num dos tablóides de Dublin/Irlanda em 2006, aquando dos incidentes de manifestações da Comunidade Islâmica, após a intervenção do Papa Bento XVI, numa das Universidades de Alemanha: no regresso de Sua Santidade a Roma, o Papa recebe, em audiência, Cardeais Italianos e Franceses. No fim ao despedir-se deles, o Papa pergunta aos Cardeais Italianos nos seguintes moldes: “Sou mesmo infalível?” Antes que os Cardeais Italianos respondessem a pergunta, um dos Cardeais Franceses tomou a palavra e disse: “Sua Santidade, você é mesmo inflamável”. Esse humor parece bastante trivial, mas há três ensinamentos que dele podemos tirar. Primeiro, questiona-se o fundamento teológico da infalibilidade do Papa. Segundo, a responsabilidade política e social das lideranças religiosas em promover a estabilidade e paz sacrificando os próprios interesses religiosos para o benefício da maioria no mundo cada vez mais secularizado e globalizado. Terceiro, o que as nossas palavras transmitem aos outros na “outra margem”, podem, de facto, ser inflamáveis, quando as pessoas não tiverem resposta dos problemas que as afligem.

Estamos acautelados sobre isso em Moçambique? Há acções, que a Direcção dos Assuntos Religiosos tutelada pelo Ministério de Justiça, está a levar a cabo para abordar questões similares que eventualmente possam acontecer? Moçambique já tem tido alguns sinais de alerta: (i) bons e politicamente perigosos, foram os casos das três figuras religiosas (ex-Padre Católico Romano, dois Reverendos Pastores das Igrejas Reformadas) que ocuparam a presidência da Comissão Nacional de Eleições, desde 1993 até 2007; (ii) ameaçadores e politicamente educativos, foram os pedidos da Comunidade Muçulmana durante o mandato do ex-Presidente da República, Joaquim Alberto Chissano sobre feriados nacionais, alteração da data das Eleições Provinciais em 2007 e as manifestações contra as publicações profanas da imagem do Profeta Muhamad (SAW).

Mas onde começar? O caso do papel da religião, seja Islão ou Cristianismo, está presente na mente de todos nós, mas está um pouco fundido com raiva e ignorância paralisante. O que alguns de nós imaginam ou ouvem, duma mesquita, por exemplo, presume-se que sejam sons estranhos, motivando actos inexpressáveis. Tudo o que um Cristão Católico Romano piedoso sabe, talvez superficilamente, dos Testemunhas de Jeová, IURD e outras, é a distribuição de folhetos religiosos, gritaria interminável ou poluição sonora que contraria a postura urbana, ou para os mais entendidos, é a teologia de prosperidade, aludindo o pressuposto bíblico que diz “é dando que se recebe”. O que um Cristão das Igrejas Reformadas, mais conhecidas por Igrejas Protestantes, fervoroso sabe minimamente dos católicos romanos é aquele ritual formal e seco, com excesso de reverência que limita outras manifestações espirituais abordadas na Epístola de São Paulo, falta de exorcismos e curas espirituais. O que o Padre Católico sabe distorcidamente sobre o Pastor ou Bispo das Igrejas Reformadas, é que esses últimos têm pouca formação e pouco domínio da teologia, se tiver que evitar o carácter de seitas que tais confissões religiosas representam. É sempre o nosso ponto de vista “desta margem”, a dicotomia “Nós e Eles”. Se um dia houver necessidade, em Moçambique, e a esperança da maioria dos cidadãos captar a gramática e a sintaxe da teologia política, me parece que devia começar nas instituições de ensino. Isso ajudará a reduzir, pelo menos em parte, a distância que nos separa da outra margem.

4. Considerações finais
A história da teologia política no Ocidente é instrutiva, e ela não terminou com o nascimento da ciência moderna, ou o iluminismo, as revoluções Américana e Francesa, ou um outro momento histórico definitivo. A teologia política marcou presença na vida intelectual do Ocidente até no Séc. XX, aquando do desapego teocêntrico da Idade Média assim como quando encontrara razões modernas para buscar inspiração política na Bíblia. À primeira vista, essa teologia política moderna expressou uma perspectiva iluminada e foi bem acolhida por aqueles que desejavam bem a democracia liberal. Mas durante a Segunda Guerra Mundial tomou uma forma apocalíptica, e o “novo homem” desejoso ardentemente em abraçar o futuro começou a criar justificações teológicas para as mais repugnantes e idólatras ideologias da era, o Nazismo e o Comunismo, no entender dos amantes da liberdade e paz. É um conto que não enverva a ninguém nos nossos dias, mas levanta questões profundas sobre a fragilidade da visão moderna das coisas. Mesmo a mais estável e bem sucedida democracia, com intelectuais de renome e cidadãos civilizados, como soi dizer, provaram vulneráveis ao messianismo político e sua justificação teológica. Se pudéssemos entender como isso foi possível nos países avançados do Ocidente, se pudéssemos entender a teologia política numa linguagem mais reconhecida, representada por pessoas em indumentária familiar com nomes familiares, talvez possamo-nos recordar a nós mesmos como o mundo é visto a partir daquela perspectiva. Esse seria um pequeno passo dado para medir o desafio que enfrentamos e decidir como responder quando situações similares se abatem sobre o nosso país.

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