"Antes de se realizarem as eleições no Zimbabwe, publiquei um texto em que basicamente dizia o seguinte: não se pode esperar que uma ditadura organize eleições democráticas".
Mia Couto
O modo como decorreu o processo eleitoral no país vizinho não me trouxe surpresas. Como era de esperar, toda a vitória da oposição seria reconvertida pelo regime de Mugabe. A oposição fez bem em testar a oportunidade, mesmo que ela não passasse de um cenário de falsidade. Obrigar o regime a fazer eleições foi já o resultado da luta da oposição.
As manobras que se seguiram ao pleito eleitoral foram do mais grosseiro. Em qualquer outro lugar do mundo elas seriam tidas como inaceitáveis. Como é que os dirigentes dos países vizinhos toleram esta mal preparada encenação? O que se seguiu e está seguindo prenuncia um final muito pouco feliz. Os incidentes xenófobos na África do Sul são já um resultado desta trágica tolerância política.
Há um século que trabalhadores estrangeiros operam na África do Sul. Nunca se registaram, antes, conflitos desta dimensão. Nos últimos três anos o número de imigrantes cresceu exponencialmente devido à fuga de cidadãos zimbabweanos que tentam escapar do caos em que foi convertido o seu país.
De celeiro de África o Zimbabwe resvalou para uma condição de tristes recordes internacionais: a maior taxa de desemprego, a maior taxa de inflação, a maior taxa de mortalidade materno-infantil. Em pouco tempo, mais de três milhões de zimbabweanos procuram nova vida sobretudo na África do Sul.
A complacência dos dirigentes da região está criando conflitos entre uma SADC antes unida. O Presidente zambiano, crítico de Mugabe, ameaça demitir-se de presidente em exercício da organização regional. Para ele, a SADC deixou de ser uma ferramenta de imposição de legalidade e respeito pela democracia. Dentro da própria África do Sul, a discórdia instalou-se ao mais alto nível.
Jacob Zuma, actual presidente do ANC (possivelmente o futuro chefe de Estado), ergueu a voz contra a atitude passiva de Thabo Mbeki. No início (a bem dizer, muito no início) eu ainda entendia essa complacência dos chefes de Estado da vizinhança. Havia cuidados de diplomacia, uma certa reserva em relação à qualidade da oposição zimbabweana, o receio de interferir num processo que pode incendiar toda a região. Mas, agora, a região está já incendiada e as chamas estão atingindo a economia e a estabilidade dos países limítrofes do Zimbabwe. Para não falar do bom-nome das democracias e dos estadistas destes países.
O que se está avizinhando no país de Mugabe é uma farsa escrita com sangue. O teatro ainda não chegou ao fim: uma segunda volta eleitoral vai decorrer enquanto, no intervalo, a ditadura se prepara para garantir a todo o custo a continuidade do regime de desgovernação que conduziu à miséria milhões de zimbabweanos. Para que a mentira seja total há que haver uma voz ingénua que revele que, afinal, o rei vai nu. Essa voz veio de onde menos se esperava: a graciosa esposa do idoso Presidente, a primeira-dama Grace Mugabe.
A antiga secretária do Presidente veio a público anunciar que ninguém mais senão o seu idoso marido poderia ousar entrar no palácio presidencial. O arcebispo Desmond Tutu já havia dito que para uma caricatura do que seria um ditador africano Robert Mugabe se tinha mesmo excedido. O Nobel Wole Soyinka ridicularizara o exemplo de pouca dignidade que África está dando ao mundo ao contemporizar com a existência de líderes desta qualidade.
É certo que Mugabe tinha dito há cerca de um mês que um dirigente que deixou de ser votado e querido pelo seu povo deve abandonar a política. Em que palavras confiar? Nas de Mugabe, aceitando retirar-se caso não seja eleito? Ou nas da primeira-dama que mandou as eleições às favas? O mais sensato é acreditar que ambos estão dizendo a verdade.
Afinal, Mugabe não abandonará a política se perder as eleições. Ele já perdeu as eleições. E ele, há muito que abandonou a política. O que ele faz já é outra coisa: é uma guerra contra o seu próprio povo.
Mia Couto, escritor moçambicano, é colunista da Revista África 21
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