“É preciso criar um novo ímpeto para que o Governo não se sinta desresponsabilizado em relação à Estratégia Anti-Corrupção. Esse novo ímpeto pode ser alimentado pela sociedade civil, pelo sector privado e pelos media, através da monitoria independente da Estratégia Anti-Corrupção”
(Maputo, 7 de Janeiro de 2008) O Presidente da República, Armando Guebuza, revogou o Fórum Nacional Anti-Corrupção (FNAC) que ele criara através do decreto 1/2007 como um órgão de consulta sobre a implementação da Estratégia Anti-Corrupção (EAC), aprovada pelo Governo em Abril de 2006. Segundo relatos da comunicação social, a revogação do FNAC foi uma antecipação do Governo à possibilidade de o decreto poder vir a ser considerado inconstitucional pelo Conselho Constituticional (CC). A Renamo, o maior partido da oposição, havia submetido ao CC um pedido de verificação da constitucionalidade desse decreto.
Na opinião do Centro de Integridade Pública (CIP), a revogação do FNAC levanta duas questões fundamentais que merecem análise e solução. A primeira tem a ver com a dinâmica da reforma institucional enquadrada no PARPA II e, concretamente, das reformas do Sector Público e da Justiça; a segunda tem a ver com a própria implementação da Estratégia Anti-Corrupção, que tinha o FNAC como um órgão de referência.
Comecemos pela segunda questão, onde a revogação do FNAC pode ser vista a partir de duas perspectivas: uma meramente legal-constitucional; e outra estritamente de substância e relevância.
O FNAC já tinha morrido à nascença
Interessa-nos analisar a extinção do FNAC do ponto de vista da implementação da Estratégia Anti-Corrupção – e não do ponto de vista legal. O FNAC foi criado como órgão de consulta e monitoria da EAC. Conforme os seus estatutos, pretendia promover o debate entre o Governo, a sociedade civil e o sector privado em matérias sobre combate à corrupção e boa governação.
O FNAC foi extinto antes de completar um ano de existência. Aquando da sua criação, alguns analistas criticaram o facto de se estarem a criar mais instituições, ao invés de se potenciarem as existentes. Nunca concordamos com esse argumento, pelo facto de que o seu leitmotiv constitutivo ter sido a consulta e o debate. Houve quem confundisse o FNAC com uma entidade de investigação. A ideia de foruns de debate sobre a corrupção não era nova.
Em muitas recentes democracias com altos níveis de corrupção e que embarcaram por reformas do sector público, foruns da mesma natureza foram criados para proporcionarem níveis razoáveis de consenso sobre que tipo de reformas eram urgentes. E nalguns deles, esses foruns tem tido um papel central, como é o caso da África do Sul. O problema do nosso FNAC é que o seu modelo não foi estudado. E por isso, não se esperavam grandes debates naquele espaço. Algumas razões podem ser apontadas:
Primeiro, porque o FNAC era dirigido pela Primeira Ministra e era ela quem orientava a "tendência" das decisões.
Segundo, porque era composto maioritariamente por quadros dos Governos central, provincial e distrital e militantes do partido no Governo; a maioria dos seus 78 membros era proveniente desses círculos; sendo assim, era a "tendência" apoiada pela Primeira Ministra que vingava.
Terceiro, era profundamente incoerente que a Primeira Ministra presidisse um forum onde também participavam, em posições subalternas, o Procurador Geral da República e deputados da Assembleia da República - sobretudo tendo em conta o seu estilo de liderança do tipo hierárquico sobre os demais.
Quarto, porque a representação da sociedade civil era minoritária e meramente decorativa e não havia representação da comunidade académica.
Quinto, porque a relação entre os vários actores não era uma relação de pares; era uma relação em que o Governo vincava a sua dominação sobre os demais.
Em suma, o FNAC não foi constituído no sentido de juntar sensibilidades diferentes e com reconhecido mérito na sociedade. Não houve critérios de selecção claros (de competência e especialização) na indicação de quem podia ser membro do fórum. O FNAC era um fórum do Governo. Por isso, encontramos situações em que um Secretário Permanente provincial, a quem o Tribunal Administrativo mencionou no seu exame à Conta Geral do Estado de 2005 como tendo desviado fundos, era membro do fórum e falava energicamente contra a corrupção. Por outro lado, a dimensão do FNAC era demasiado grande para se esperar algum debate.
Significados da extinção do forum
O efeito imediato da extinção do FNAC é o de permitir um abrandamento no comentimento do Governo para com a implementação da EAC. Numa carta enviada aos membros do ex-FNAC, a Primeira Ministra, Luisa Diogo, faz saber que "a nível central, continuará a funcionar a Comissão Inter-ministerial da Reforma do Sector Público, como órgão coordenador da Reforma do Sector Público (...)", querendo com isto dizer que as matérias da EAC ficarão exclusivamente a cargo deste órgão.
Isto significa que o tratamento, ao nível central, das matérias ligadas à boa governação fica diluído no conjunto de outras matérias cruciais do desenvolvimento sócio-económico, reforçando-se a leviandade com que a boa governação tem sido tratada pelo Governo. Por outras palavras, com a extinção da FNAC, quer a sociedade civil quer o sector privado ficam afastados de qualquer possibilidade de interagirem com o Governo no sentido da melhoria da abordagem anti-corrupção em Moçambique.
Por outro lado, a remissão do debate sobre a implementação da EAC para tratamento exclusivo nos Observatórios de Pobreza (provinciais) e nos Conselhos Consultivos Distritais, não é a melhor solução, pois os Observatórios da Pobreza (OPs) e os Conselhos Consultivos (CCs) não são nenhuns foruns de debate; são espaços de leitura de discursos que se esgotam em poucas horas.
A solução apontada pela Primeira Ministra não foi devidamente estudada. Era preciso analisar a dinâmica dos OPs e dos CCs para perceber que remeter para esses foruns o debate das matérias sobre boa governação não resolve o problema da ausência de debate, a não ser que se altere radicalmente a forma com os OPs e os CCs funcionem.
Na verdade, os OPs foram estruturados numa perspectiva de troca de elogios mútuos entre o Governo, a sociedade civil e os doadores. E os CCs são espaços altamente partidarizados, capturados pela corte dos administradores distritais e em que a participação da sociedade civil é ainda deficitária pelas razões conhecidas. Neste sentido, a resposta do Governo não foi a mais correcta; é uma resposta que enterra toda a perspectiva de diálogo que tem vindo a ser construída nos últimos anos a este respeito.
Embora o discurso da Primeira Ministra tenha enfatizado que o Governo continua empenhado no combate à corrupção e que "conta com a colaboração da sociedade moçambicana", a forma como a solução foi encontrada não reflecte necessariamente essa abertura à colaboração. Por exemplo, o FNAC tinha uma Comissão Técnica que lhe assessorava e que era, na verdade, o órgão de monitoria da EAC. Mas esta Comissão Técnica não foi consultada pela Primeira Ministra no sentido de se debater os efeitos da extinção do FNAC e as saídas alternativas para se assegurar a implementação e a monitoria da EAC e, sobretudo, para se assegurar o diálogo com os demais actores a nível central. Os membros da Comissão Técnica foram confrontados com factos consumados.
Que resposta da sociedade civil?
Alguns membros de organizações da sociedade civil e do sector privado estavam representados no FNAC. O CIP estava representado, indicado pelo G20. Um dos contributos que demos foi o de influenciar para que as reuniões do FNAC fossem abertas ao público e à comunicação social. Isso foi conseguido com o apoio de outros membros, alguns deputados da AR, alguns jornalistas. Mas a representação da sociedade civil no FNAC era dispersa e nem sempre teve em conta organizações que lidam com a área da Governação.
Seja como for, a extinção da FNAC é uma oportunidade para a sociedade civil, no sentido em que ela abre portas para a criação de uma Plataforma para Boa Governação, cuja missão primeira seria a de fazer a monitoria da implementação da EAC. A extinção do FNAC não significa a extinção da EAC e dos seus planos de acção. A EAC e os seus planos de acção existem e não vão ser extintos. Por isso, é preciso criar um novo ímpeto para que o Governo não se sinta desresponsabilizado em relação à EAC. Esse novo ímpeto pode ser justamente alimentado pela sociedade civil, pelo sector privado e pelos media, através da monitoria da estratégia.
Na verdade, a monitoria da EAC só faz sentido se ela for levada a cabo por organizações independentes, porque só assim é que se pode avaliar com eficácia se as acções planeadas estão a ser implementadas, e exigir contas ao Governo no caso de nada estar a acontecer; ou no caso de as coisas estiverem a acontecer sem a qualidade que se pretende. O Governo pode muito bem contar, neste sentido, com as organizações da sociedade civil.
Deste ponto de vista, a extinção da FNAC não é de todo grave. Sendo um revés para o Governo no sentido em que o considerava como uma das expressões maiores da sua proclamada vontade política, a extinção do FNAC abre uma janela de oportunidade para que haja uma monitoria eficaz e independente da EAC. O cenário que se coloca é o seguinte: o Governo continua a implementar a sua estratégia e a sociedade civil e o sector privado fazem a monitoria dela, de forma independente. Essa monitoria pode ser complementada com a criação de mecanismos de diálogo e consulta semestrais entre o Governo e uma Plataforma para a Boa Governação, nos quais se debateriam as perspectivas governamentais e os pontos de vista dos demais actores sobre a temática. Nesse diálogo, o Governo seria representado pelo Ministério da Função Pública.
Sendo parte de um conjunto de organizações que acaba de estabelecer um programa de Monitoria da Governação Local, devidamente reconhecido pelo Governo e demais instituições do Estado, o Centro de Integridade Pública lança um repto às organizações da sociedade civil e sector privado para a criação de uma Plataforma para a Boa Governação com o objectivo central de monitorar a implementação da Estratégia Anti-Corrupção, complementando o trabalho do Governo.
O CC e a dinâmica da Reforma Institucional
As recentes decisões do Conselho Constitucional, ao reprovar instituições que eram um símbolo da reforma institucional do Estado, merecem uma reflexão mais profunda que extravase a abordagem legal-constitucional.
Nos últimos anos, Moçambique tem vindo a tentar implementar uma segunda geração de reformas institucionais que compreendem, entre outras, a área da governação, nomeadamente a gestão das finanças públicas, a descentralização, a gestão do sector público (onde se inclui a luta contra a corrupção) e a reforma legal e judiciária. O pressuposto é de que estas reformas, se bem implementadas, podem melhorar o clima para o investimento estrangeiro e garantir que o pobres continuem a beneficiar do crescimento económico.
O contexto dessas reformas é marcado pela dependência externa e, consequentemente, pela ajuda externa, cuja modalidade em voga é o Apoio Directo ao Orçamento (ADO). Através deste ADO, o Governo e os doadores estabeleceram foruns de discussão e avaliação recíproca. Neste sentido, muitas das reformas encetadas pelo Governo – e revogadas por terem sido consideradas inconstitucionais – são, na verdade, reformas influenciadas pelos doadores. A criação da Autoridade da Função Pública, do Conselho de Coordenação da Justiça e Legalidade (CCLJ) e o próprio Forum Anti-Corrupção foram apoiadas pelos doadores.
Algumas das instituições são até indicadores de avaliação do desempenho do Governo à luz do PARPA II. Por exemplo, o FNAC foi estabelecido porque o Governo e os doadores tinham acordado que eram necessários mecanismos de implementação e monitoria da EAC. A Autoridade da Função Pública foi estabelecida porque era fundamental imprimir-se outra dinâmica à reforma do sector público, que é amplamente apoiada pelos doadores. O CCLJ foi criado porque se viu que não havia nenhuma coordenação na reforma legal em curso, uma área onde o diálogo entre o Governo e os doadores é um diálogo de surdos. O CCLJ era, para os doadores, a porta de diálogo com o sector judiciário e, portanto, uma ferramenta importantíssima.
Por isso, a reprovação destas instituições deve ser analisada para lá do aspecto legal. Uma das razões da reprovação do CCLJ é que a instituição juntava o executivo e o judiciário no mesmo saco e a Ministra da Justiça estava em posição subalterna em relação ao Presidente do Tribunal Supremo. Eventualmente se colocaria o mesmo para o FNAC, onde a Primeira Ministra mandava no PGR. Ambas as situações minavam o princípio de separação de poderes, central numa democracia.
Do nosso ponto de vista, parece claro que as três entidades agora reprovadas eram fundamentais para o processo de reforma. Ao chumbá-las, o CC apenas olhou para o aspecto legal – que é aliás seu escopo exclusivo – e não tomou em conta a substância inerente a cada uma das instituições e a necessidade da sua existência no actual quadro de reforma do Estado. Temos vindo a elogiar o papel do CC enquanto pilar de integridade e de independência, e consideramos importante que a instituição advogue com insistência no sentido da afirmação da separação de poderes em Moçambique.
Mas, devemos dizer, a sua interpretação restritiva da lei constitucional parece não ser compatível com a dinâmica da reforma institucional. Este facto sugere a ausência de um debate amplo em Moçambique sobre que tipo de reformas queremos; sugere a ausência de consultas mais alargadas, não apenas sobre o enquadramento legal das instituições e o modo de as criar, mas também sobre que tipo de engenharias institucionais pretendemos.
Num contexto em que a democracia está ainda em construção, parece-nos aceitável que haja um espectro mínimo de coordenação inter-sectorial. Juntar os três poderes num mesmo espaço de debate e coordenação não é de todo grave, desde que o modelo escolhido não seja estruturado por uma relação hierárquica entre os mesmos. Juntar os três poderes numa espécie de pacto de Estado seria permitir alguma coordenação e consenso, a qual evitaria alguns erros graves que tem vindo a ser cometidos, a exemplo da nova Lei da Organização do Judiciário, a qual não faz avanços substanciais à favor da independência dentro do sector.
Moçambique precisa de um CC forte e independente, mas também de reformas coordenadas e debatidas entre os vários actores. O Governo tem vindo a fazer reformas num contexto de diálogo com os doadores, mas elas não escondem a ausência de visão e estratégia. O mais dramático nem é sequer a falta de visão sobre o futuro, mas sim o facto de não existir o mínimo questionamento sobre que tipo de engenharias institucionais podem permitir reformas compreensivas no actual quadro constitucional.
(CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA)
Final phase for mass rape trial that has horrified France
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Fifty-one men are on trial in a case that focuses on a formerly married
couple, Dominique and Gisèle Pelicot.
10 hours ago
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