Sunday, 31 July 2016

Thomas Selemane



Desmistificando a governação visionária 2004-2014[i]

Thomas Selemane

A década de 2004-2014 foi a que mais transformações políticas, sociais e económicas trouxe a Moçambique pós-independente e pós-guerra civil. Conhecidas por toda a gente, porque vividas por todos, variando na dimensão e intensidade consoante a classe política, social e económica a que cada pessoa pertence, essas transformações foram detalhadamente analisadas e estão agora sistematizadas nestas 144 páginas de João Mosca, Máriam Abbas e Natacha Bruna, com o título “Governação, 2004-2014: Poder, Estado, Economia e Sociedade.”

O período analisado no livro 2004-2014 coincide com aquele em que foi Armando Guebuza foi Presidente de Moçambique. Mesmo assim, os autores decidiram não incluir o nome do ex-Presidente da República no título do livro, porque como eles justficam “o dilema da decisão foi o de saber, até que ponto o Presidente foi um elemento decisor sem o qual, ou sendo outro, o percurso de Moçambique no período estudado pudesse ser diferente.”(ver pág. 5). Portanto, este não é um livro sobre Armando Guebuza, mas sim sobre o percurso feito por Moçambique nos últimos dez anos a nível de governação, poder, Estado, economia e sociedade.

Nos cinco capítulos que compõem este livro - Estado e Sociedade, 1o capítulo; Economia Política da Governação entre 2004-2014, 2o capítulo; Evolução da Economia, 3o capítulo; Educação e Saúde, 4o capítulo; e Considerações Finais no último capítulo – os autores desconstroem o processo de articulação entre os recursos do Estado disponíveis, as tensões sócio-políticas e os conflitos económicos vividos em Moçambique naqueles 10 anos, em contraposição com as opções tomadas no processo do chamado “combate à pobreza”, que já tinha sido “absoluta” mas depois deixou de sê-la mesmo sem ter sido reduzida.

No 1o Capítulo do livro, Estado e Sociedade (págs11-47), os autores radiografam o percurso das liberdades e direitos dos cidadãos, particularmente as liberdades de expressão e de associação, liberdade de imprensa, o Estado de direito, as eleições e as estabilidades social e militar.

No período em análise (2004-2014), como notam Mosca, Abbas e Natacha Bruna, Moçambique assistiu o crescimento de movimentos retrógrados de ataque às vozes críticas (ver págs. 12-15), ao assassinato de carácter com cunho racista. Os moçambicanos foram estratificados em diferentes camadas, tendo existido“os de gema, os originários, os apóstolos da desgraça, os tagarelas e os delirantes” e outros inomináveis. A par da deterioração da liberdade de expressão e de imprensa, a partidarização (ou em rigor, a frelimização) do aparelho do Estado foi oficializada (ver pág. 28) tendo atingido níveis alarmantes.

Ainda no 1o capítulo, no ponto referente ao “Estado, economia e sociedade” (págs. 33-37), os autores chamam à atenção para as promiscuidades entre os interesses públicos e privados, que “se misturam de forma consciente com o objectivo de formar uma classe média endinheirada mas não empresarial”. Ou como diria o actual vice-ministro da indústria e comércio, “Moçambique só tem empresários de cartões de visita.”

Como notam os autores, os aspectos apresentados neste capítulo representam a continuidade do regime ideológico de direita adoptado após as reformas de 1987, e alguns aspectos são explicados por factores que remontam à constituição da FRELIMO (Movimento, em 1962) e do Estado moçambicano em 1975 (ver págs. 46-47).

É preciso lembrar que foi durante a era visionária de 2004-2014 que Moçambique retornou à guerra, conheceu o fenómeno dos raptos, reviveu os crimes de “delito de opinião” transaccionados como “crimes de atentado à segurança do Estado”, e viu o seu futuro hipotecado em dívidas ocultas cujas consequências reais e completas ainda estão por ser vistas.

O 2o Capítulo (Economia Política da Governação 2004-2014) seguido do 3o Capítulo (Evolução da Economia) são os que escalpelizam as componentes económicas da década 2004-2014, nomeadamente, “o reforço do papel do Estado através do investimento em empresas públicas monopolistas e de sectores estratégicos em paralelo com o alargamento de um mercado desregulado e não fiscalizado”.

O período analisado neste livro coincide com aquele em que Moçambique se tornou “novo rico” em recursos minerais, particularmente gás natural, areias pesadas, carvão mineral e sinais de ocorrência de petróleo. A política económica promovida naquela década promoveu um capitalismo sem capitalistas (ver pág. 53), uma réplica, no dizer dos autores, do que se viveu no país após a independência nacional: “um marxismo-leninismo” sem ou com poucos marxistas.

Essa política económica tinha um duplo objectivo (ver pág. 70): “primeiro, manter e reproduzir o controlo do poder de Estado pela elite da Frelimo que o instrumentalizou para a constituição de grupos económicos; e segundo objectivo, reforçar o poder repressivo e de controlo/clima de medo social para manter a crise de baixa intensidade (...)” O crescimento económico foi excepcional ao longo da década visionária, mas também foi paradoxal, pois não conseguiu reduzir a pobreza. E a saga das dívidas ocultas veio dizer-nos que, no fundo, em termos económicos, o que foi feito aos moçambicanos foi essencialmente uma burlacapaz de apagar tudo o que podia ser considerado positivo daquele período.

O 4o capítulo do livro, dedicado à “Educação e Saúde” (págs. 116-131) mostra que houve uma expansão significativa dos serviços de educação e saúde, porém não correspondidas com o desejável padrão de qualidade, ao mesmo tempo que se acentuaram as desigualdades regionais no acesso a esses serviços.

No concernente à educação, no período estudado, registou-se uma tendência crescente dos gastos públicos por escola até ao ano de 2010, tendo atingido o seu pico naquele ano, com valores de “aproximadamente 970 mil meticais por escola no país” (ver pág. 124). 

Na componente de saúde, conforme ilustra o gráfico 49 (Unidades sanitárias por região) – ver pág. 127, aproximadamente 67% das unidades sanitárias do país encontram-se concentradas em somente três províncias: Cidade de Maputo, Sofala e Manica, que curiosamente não são as mais populosas do país. Aliás, o gráfico seguinte: 50, na mesma pág. 127, mostra a gravidade da desigualdade de acesso aos serviços de saúde. As duas províncias mais populosas, Nampula e Zambézia, apresentam os números mais altos de habitantes para cada unidade sanitária.

O último capítulo do livro (5Capítulo, págs. 134-137) apresenta as “considerações finais”, apesar de cada um dos outros capítulos conter um resumo na sua parte final. Chamo à vossa atenção para o facto de a leitura desse capítulo não poder substituir a leitura dos demais capítulos, que como referi aqui, cada um deles possui um vasto leque de informação detalhada e análise profunda, revelando o alto grau de conhecimento e domínio das matérias neles tratadas pelos três autores.

Para terminar, devo referir que João Mosca, Máriam Abbas e Natacha Bruna adoptam neste livro uma metodologia de análise de economia política e sua relação com as políticas económicas e a governação que definiram o leito do caudal do desenvolvimento de Moçambique nos últimos dez anos assente no contexto histórico, social e político. Uma análise feita assim “com os pés no chão” e com consulta a 85 fontes bibliográficas, é robusta não somente porque permite compreender melhor a realidade e os contornos das principais decisões tomadas pela governação, mas também porque permite identificar as implicações dessas decisões no médio e longo prazos. 

E essa é a maior contribuição deste livro: a identificação e explicação sem subterfúgios do que se passou em Moçambique entre 2004 e 2014, por outras palavras, o decifrar do verdadeiro legado da governação a nível das relações de poder – na adopção do método de “dividir para reinar” e de encontrar sempre culpados “de dentro e de fora” para justificar os seus próprios falhanços. 

Ademais, este livro é uma grande contribuição para a compreensão do processo moçambicano dos últimos 10 anos na configuração do Estado, na manutenção da estrutura económica nacional de altos níveis de crescimento do PIB sem redução da pobreza, do reforço do pior do que existe no modelo de desenvolvimento neoliberal, de capitalismo de periferia dependente de poupanças externas e da delapidação de recursos naturais (produtos mineiros, florestais, faunísticos e marinhos), de “facilitações e comissões” nos negócios, e de uma sociedade  de medo e de desespero em que vivemos hoje.

Os efeitos da governação da década passada estão e estarão sempre presentes no Estado, na economia e na sociedade moçambicana. Por isso, este é um livro que vale a pena ter e ler! Espero que os mil exemplares desta tiragem inicial se esgotem entre hoje e amanhã!

Bem hajam os autores!!!
Muito obrigado pela vossa atenção!!!







[i] Texto de apresentação do livro “Governação, 2004-2014: Poder, Estado, Economia e Sociedade” de João Mosca, Máriam Abbas e Natacha Bruna. Título da responsabilidade do apresentador do livro e não dos autores.

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