Desmistificando a governação visionária 2004-2014[i]
A década de 2004-2014 foi a
que mais transformações políticas, sociais e económicas trouxe a Moçambique
pós-independente e pós-guerra civil. Conhecidas por toda a gente, porque
vividas por todos, variando na dimensão e intensidade consoante a classe
política, social e económica a que cada pessoa pertence, essas transformações foram detalhadamente analisadas
e estão agora sistematizadas nestas 144 páginas de João Mosca, Máriam
Abbas e Natacha Bruna, com o título “Governação, 2004-2014: Poder,
Estado, Economia e Sociedade.”
O período analisado no livro
2004-2014 coincide com aquele em que foi Armando Guebuza foi Presidente de Moçambique.
Mesmo assim, os autores decidiram não incluir o nome do ex-Presidente da
República no título do livro, porque como eles justficam “o dilema da decisão
foi o de saber, até que ponto o Presidente foi um elemento decisor sem o qual,
ou sendo outro, o percurso de Moçambique no período estudado pudesse ser diferente.”(ver
pág. 5). Portanto, este não é um livro sobre Armando Guebuza, mas sim sobre o
percurso feito por Moçambique nos últimos dez anos a nível de governação,
poder, Estado, economia e sociedade.
Nos cinco capítulos que compõem este livro -
Estado e Sociedade, 1o capítulo; Economia Política da
Governação entre 2004-2014, 2o capítulo; Evolução da Economia,
3o capítulo; Educação e Saúde, 4o capítulo; e
Considerações Finais no último capítulo – os autores desconstroem o processo de
articulação entre os recursos do Estado disponíveis, as
tensões sócio-políticas e os conflitos económicos vividos em
Moçambique naqueles 10 anos, em contraposição com as opções tomadas
no processo do chamado “combate à pobreza”, que já tinha sido
“absoluta” mas depois deixou de sê-la mesmo sem ter sido reduzida.
No 1o Capítulo do livro, Estado e
Sociedade (págs11-47), os
autores radiografam o percurso das liberdades e direitos dos cidadãos,
particularmente as liberdades de expressão e de associação, liberdade de
imprensa, o Estado de direito, as eleições e as estabilidades social e militar.
No período em análise (2004-2014), como notam Mosca,
Abbas e Natacha Bruna, Moçambique assistiu o crescimento
de movimentos retrógrados de ataque às vozes críticas (ver
págs. 12-15), ao assassinato de carácter com cunho racista. Os
moçambicanos foram estratificados em diferentes camadas, tendo existido“os de
gema, os originários, os apóstolos da desgraça, os tagarelas e os
delirantes” e outros inomináveis. A par da deterioração da
liberdade de expressão e de imprensa, a partidarização (ou em
rigor, a frelimização) do aparelho do Estado foi oficializada (ver
pág. 28) tendo atingido níveis alarmantes.
Ainda no 1o capítulo, no ponto referente ao
“Estado, economia e sociedade” (págs. 33-37), os autores chamam à atenção para
as promiscuidades entre os interesses públicos e privados, que “se
misturam de forma consciente com o objectivo de formar uma classe média
endinheirada mas não empresarial”. Ou como diria o actual vice-ministro da indústria
e comércio, “Moçambique só tem empresários de cartões de visita.”
Como notam os autores, os aspectos apresentados neste
capítulo representam a continuidade do regime ideológico de direita adoptado
após as reformas de 1987, e alguns aspectos são explicados por factores que
remontam à constituição da FRELIMO (Movimento, em 1962) e do Estado moçambicano
em 1975 (ver págs. 46-47).
É preciso lembrar que foi durante a era visionária de
2004-2014 que Moçambique retornou à guerra, conheceu o fenómeno dos
raptos, reviveu os crimes de “delito de opinião” transaccionados como “crimes
de atentado à segurança do Estado”, e viu o seu futuro hipotecado em
dívidas ocultas cujas consequências reais e completas ainda estão por ser
vistas.
O 2o Capítulo (Economia Política da
Governação 2004-2014) seguido do 3o Capítulo (Evolução da
Economia) são os que escalpelizam as componentes económicas da década 2004-2014,
nomeadamente, “o reforço do papel do Estado através do investimento em
empresas públicas monopolistas e de sectores estratégicos em paralelo com o
alargamento de um mercado desregulado e não fiscalizado”.
O período analisado neste livro coincide com aquele em
que Moçambique se tornou “novo rico” em recursos minerais, particularmente gás
natural, areias pesadas, carvão mineral e sinais de ocorrência de
petróleo. A política económica promovida naquela
década promoveu um capitalismo sem capitalistas (ver pág. 53), uma
réplica, no dizer dos autores, do que se viveu no país após a independência
nacional: “um marxismo-leninismo” sem ou com poucos marxistas.
Essa política económica tinha um duplo objectivo (ver pág.
70): “primeiro, manter e reproduzir o controlo do poder de Estado pela elite da
Frelimo que o instrumentalizou para a constituição de grupos económicos; e segundo
objectivo, reforçar o poder repressivo e de controlo/clima de medo social para
manter a crise de baixa intensidade (...)” O crescimento económico foi
excepcional ao longo da década visionária, mas também foi paradoxal, pois não
conseguiu reduzir a pobreza. E a saga das dívidas ocultas veio dizer-nos que,
no fundo, em termos económicos, o que foi feito aos moçambicanos
foi essencialmente uma burlacapaz de apagar tudo o que podia ser considerado
positivo daquele período.
O 4o capítulo do livro, dedicado à
“Educação e Saúde” (págs.
116-131) mostra que houve uma expansão significativa dos serviços de educação e
saúde, porém não correspondidas com o desejável padrão de qualidade, ao mesmo
tempo que se acentuaram as desigualdades regionais no acesso a esses serviços.
No concernente à educação, no período
estudado, registou-se uma tendência crescente dos gastos públicos por
escola até ao ano de 2010, tendo atingido o seu pico naquele ano, com valores
de “aproximadamente 970 mil meticais por escola no país” (ver pág. 124).
Na componente de saúde, conforme ilustra o gráfico 49
(Unidades sanitárias por região) – ver pág. 127, aproximadamente 67% das
unidades sanitárias do país encontram-se concentradas em somente três
províncias: Cidade de Maputo, Sofala e Manica, que curiosamente não são as mais
populosas do país. Aliás, o gráfico seguinte: 50, na mesma pág. 127, mostra a
gravidade da desigualdade de acesso aos serviços de saúde. As duas províncias
mais populosas, Nampula e Zambézia, apresentam os números mais altos de
habitantes para cada unidade sanitária.
O último capítulo do livro (5o Capítulo, págs.
134-137) apresenta
as “considerações finais”, apesar de cada um dos outros capítulos conter um
resumo na sua parte final. Chamo à vossa atenção para o facto de a leitura
desse capítulo não poder substituir a leitura dos demais capítulos, que como
referi aqui, cada um deles possui um vasto leque de informação detalhada e
análise profunda, revelando o alto grau de conhecimento e domínio das
matérias neles tratadas pelos três autores.
Para terminar, devo referir que João Mosca, Máriam Abbas e Natacha
Bruna adoptam neste livro uma metodologia de análise de economia
política e sua relação com as políticas económicas e a governação que
definiram o leito do caudal do desenvolvimento de Moçambique nos últimos dez
anos assente no contexto histórico, social e político. Uma análise feita
assim “com os pés no chão” e com consulta a 85 fontes
bibliográficas, é robusta não somente porque permite compreender melhor a
realidade e os contornos das principais decisões tomadas pela governação, mas
também porque permite identificar as implicações dessas decisões no médio e
longo prazos.
E essa é a maior contribuição deste livro: a identificação e
explicação sem subterfúgios do que se passou em Moçambique entre 2004
e 2014, por outras palavras, o decifrar do verdadeiro legado da governação a
nível das relações de poder – na adopção do método de “dividir para
reinar” e de encontrar sempre culpados “de dentro e de fora” para justificar os
seus próprios falhanços.
Ademais, este livro é uma grande contribuição para a
compreensão do processo moçambicano dos últimos 10 anos na configuração do
Estado, na manutenção da estrutura económica nacional de altos níveis
de crescimento do PIB sem redução da pobreza, do reforço do pior
do que existe no modelo de desenvolvimento neoliberal, de capitalismo de
periferia dependente de poupanças externas e da delapidação de recursos
naturais (produtos mineiros, florestais, faunísticos e marinhos), de
“facilitações e comissões” nos negócios, e de uma sociedade de medo e de
desespero em que vivemos hoje.
Os efeitos da governação da década
passada estão e estarão sempre presentes no Estado, na economia e na
sociedade moçambicana. Por isso, este é um livro que vale a pena ter e
ler! Espero que os mil exemplares desta tiragem inicial se esgotem entre hoje
e amanhã!
Bem hajam os autores!!!
Muito obrigado pela vossa atenção!!!
[i] Texto de apresentação
do livro “Governação, 2004-2014: Poder, Estado, Economia e Sociedade” de João
Mosca, Máriam Abbas e Natacha Bruna. Título da responsabilidade do apresentador
do livro e não dos autores.