POR
Eduardo White
Tenho que ser homem todos os dias e poeta quando
escrevo. Apesar de me pesar o primeiro, dói-me mais o segundo. Hoje é
segunda-feira e a vida me chama e duras batalhas me
esperam para que as enfrente. Suo, já, de percebê-las tão vivificadas, tão bem
nutridas, tão prontas para me fazerem frente. Eu venho débil da poesia e o
poeta, cuja insónia tanto me prejudica, nem percebe que necessito de descanso,
que preciso desse repouso tão necessário às lutas que hoje pressinto travarei.
Escreve desalmadamente como se fossem
todas as palavras esgotarem-se, todos os versos abandoná-lo. Chamo por ele mas
nem disso se apercebe. Tenho o corpo cansado, os olhos avermelhados, a cabeça
gasta de tanto tê-la emprestada. Entre a correria dos poemas que dele
transcrevo, passam-me, tempestivas, as imagens do que tenho por realizar mais
daqui a bocado, do que tenho que exercer para comprar cigarros e livros e as
coisas necessárias para que a casa seja uma casa e nela possamos habitar-nos.
Por outro lado, existe o amor que amamos. A mulher que nos mantém a amizade e
nos suporta os maus humores, a desarrumação que fazemos, a preguiça que mostramos
para os trabalhos domésticos dos quais nos abstemos. A mulher que amamos é o
amor de que não nos furtamos, é essa energia que não pagamos, é esse equilíbrio
que tanto necessitamos. Por isso, digo-lhe repetidamente:
Deixa que eu descanse para
que possa ganhar o almoço, os livros, o tabaco, o whisky, as flores que temos para
oferecer. E ele não me ouve e, por isso, eu bem gostaria de viver à custa dele.
Todavia, é de todo impossível essa realidade. Bem que tentámos, mas são tão
ruins os versos e são tão poucos os que ainda se leem que logo, logo,
desistimos.
Vou eu trabalhar? Pergunto-lhe.
Vai tu, diz-me ele daquele
seu ar altivo e daquela pobreza visível que não se lhe esconde. E eu olho-o só,
olho-o só porque mais não tenho o que lhe dizer e porque, cá em casa, também, é
o único facto que nos resta assim tão encantado. É um bom homem, este nosso
poeta. E' um pouco desequilibrado, diga-se a verdade, no entanto, é também o
nosso amor que me pede para que o deixe ficar, embora lhe pese a idade e o cansaço
de não ter pensado naquilo. Este poeta é uma sombra que me persegue, é uma cruz
que carrego. Ama quem amo, vive por mim alimentado e ainda lhe registo os
filhos que procria na minha cama. Estou cansado. Verdadeiramente cansado. Não
dele, que ele é um facto, mas das coisas que escreve, das horas que me rouba e,
sobretudo, desse seu modo tresloucado. Não posso dizer basta. Não tento e nem
por tentativa ouso. O amor necessita dele, o amor no seu todo, e se o poeta
parte, esse infiel escrevinhador embriagado, a vida, aqui, não terá sentido, não
será esse fardo que eu e o amor carregamos e que nos faz viver embora seja tão
pesado.
Apesar de tudo, hoje o País
que parece infeliz, acordou bonito e brilhante e a cheirar a maresia que o mar
lhe traz. Olho-o da janela da flat aonde moro, da mesma janela aonde tanta
vezes o choro e o celebro e o beijo e há uma luminosidade impregnante
em tudo, até nos dois bêbedos que passam a caminho de casa, ou não ou talvez. Mas
vão de mãos dadas e cambaleantes e há nisso uma certeza cumpliciada, a de serem
felizes, assim, a de estarem tristes se for tal razão esse outro modo de se
verem. Vão pela avenida cinzenta e molhada, deserta de muita gente mas habitada
de tudo, dos pardais que nela debicam os restos do lixo, das flores sem nome
mais abertas ao orvalho e à frescura que sopra como se Deus tivesse a boca
aqui. E vão indissimuláveis, cantando, enquanto às janelas dois pais infelizes
os invejam a liberdade e a coragem. Vão estonteantemente andando, presos a essa
ébria amizade na qual a manhã os casa. Hoje e' um dia que até eu que não gosto
e estou com a alegria à mesa embora me pese aqueles meninos na rua ao lado,
esses filhos da falsa burguesia cujo destino seria a miséria mas o Pais não quis,
que o sujam com a sua arrogância e com o pó que os seus carros levantam nos peões
que dão e que a soruma faz. Estou com a alegria à mesa, dizia, e com ela
converso e troco carinhos, porque, decerto, o dia terá um encanto mágico mesmo
que alguns médicos que sempre estiveram em greve, no meu Pais, na ética a que
faltam, na arrogância branca das suas batas, o demonstrem agora mais
nitidamente e não se importem com os doentes que morrem, com as crianças que não
terão direito a exercer os homens que serão amanhã, porque a greve é que está
com saúde e elas não, como sempre, porque nunca a tiveram, mas o dia é mágico,
torno a dizer, e é um dia bonito. Especial, hoje, porque não sei bem porquê, ou
saberei mas ainda não percebi. Um dia que espero o amor prevaleça em tudo que
ele tocar e seja dito e seja feito e seja exercido como se o País se fosse
renovar, nas maternidades, nas fábricas que não param, nas padarias, nos
transportes públicos, nos restaurantes, nas barracas, nas igrejas, nos cinemas,
em todos aqueles lugares onde hajam homens e mulheres para quem este dia é um
dia de trabalho e nós podemos passá-lo felizes e sem, injustamente, os lembrar.
Bom dia a esses amigos e cidadãos e compatriotas, obrigado por esse dia fluminoso
e obrigado a vocês, aí, e que hoje vos brilhe a alma como brilhara',
certamente, o dia.
Por é m,
há coisas que eu gostaria o Governo ouvisse. Acabei de escrever um texto sobre
o que pensava iria ser, para nós, o ano em
que agora entramos face aos acontecimentos que se estão
a dar. Um deles é este marketing todo que as estruturas governamentais estão a
fazer, desde há um tempo a esta parte, sobre as riquezas que estão a ser
descobertas no País, que toda a gente, de um modo ou de outro, sabia e sabe que
há, mas não tinha a confirmação de um pronunciamento oficial. De forma que,
agora, toda a gente tem talheres para o banquete e a mesa nem ainda esta'
arrumada e nem o boi morto e já se começa a partilhar o que há e efectivamente não
existe. Por outro lado, a riqueza que há e não é partilhável e que se ostenta
por aí a torto e a direito, aos olhos de um Povo que o Poder pensa ter
problemas de uma cegueira em avançado grau de progressividade, e que, em face
disso, pouca importância dá ao que os menininhos nomeados para os cargos de
alta direcção persistem em fazer, essas orgias de ostentação, essas falácias
todas das suas argumentações quando tem que se justificar sobre o que fazem
mal, está a levar o País para um estado de dilatação muito pouco saudável. Se há
riqueza por explorar e o que se precisa é de trabalho para a trazer ao benefício
social, também há a que já há e não é correctamente partilhada. Se não se
redistribui o que se tem com equidade, certamente não se redistribuirá o que
vai haver. E se uns usufruem dela, não é salutar que a maioria não comparticipe
dos benefícios que ela da' e traz a essa pequena maioria que não se cansa de se
mostrar sem pudor nenhum. Necessário é, quanto antes, que o Poder se administre
de bom senso, se fortaleça de justiça e competência para que pare e se redefina
nas suas linhas de orientação quanto à saúde do Pais, no seu todo. Cada vez
mais nos abeiramos de uma violenta convulsão social, com resultados muito
feios, e os meninos tecnocratas que abundam nas direcções dos Ministérios e enchem
a língua do Povo com as suas histórias rocambolescas de excessos e
excentricidades, deveriam pensar mais no futuro do que se masturbarem como se
masturbam com as regalias que o presente lhes dá. Pelos vistos, e se eles
pensarem bem, com tão poucos aviões que a LAM tem, caso haja a porcaria que estão
a provocar, com a sua indiferença e arrogância, não lhes restarão lugares em avião
nenhum que os salve por via aérea. E, deste modo, como estão distraídos a
partilharem e a partilharem-se, nem repararam que por mar, então, só mesmo a
nado é que se safariam se soubessem nadar, porque nem barcos se lembraram de
comprar em todos estes anos. E o que parece, aqui, neste texto, uma
brincadeira, pode tornar-se, de repente, numa realidade gritantemente
assustadora. Já é tempo de se mexerem e darem-se ao trabalho de trabalhar ao invés
de estarem sempre a lêr e a transcrever os mesmos relatórios que se escrevem há
anos para nos dizerem o que já ouvimos, também, faz anos. E nem nisso são
originais, esses senhores. Reflictam, analisem e ajam. O que precisamos é de um
governo que aja de imediato antes que faça o Povo por ele. E aí, a coisa não me
parece que venha a ter os resultados que teriam se fossem eles a faze-lo. Um
barril de pólvora a pulsar desta maneira, como o é o nosso País, é passível de
um estrondoso e explosivo acidente “cardiovascular”. E, por falar nisso, os médicos
já estão na sua greve. E depois temos
quem? Os enfermeiros? Os estudantes? Os funcionários públicos? Bom, nem quero
arriscar a dar palpites que me arrepio todo. Ponham-se a suar, por favor, e a
fazer o que devem fazer a bem da Nação e do Povo. Este País merece um Futuro
melhor, mas melhor para todos e não só para alguns.
1 comment:
Parabens Manuel de Araujo pelo blog e ao Eduado White pelo texto, admiro a militância politica do primeiro e a qualidade literária do segundo,deixe me dizer que o trabalho critico intelectual requer coragem e precisa ser amplamente divulgado. A juventude precisa despertar e perceber a radiografia actual do pais, boa parte dela descrita neste texto. Oxalá a critica tenha chegado ao destinatário, se for ao bem do povo deixo ficar aqui um proverbio retroceder nunca, render se jamais
Post a Comment