Postscriptum 3
“Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.”
Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"
Retomando o texto anterior, peço ao velho Asada para me levar ao Município ao invés da casa onde me irei hospedar nos seis dias que em Quelimane vou permanecer. E, assim, estamos chegados, passados uns ligeiros minutos. Cumprimento o Manuel Araújo, agradeço-lhe o convite e falamos rapidamente da viagem e do programa para aquele dia. Como ele está ocupado, peço-lhe permissão para me ausentar e vou dar um rapidíssimo passeio pela cidade. Todavia, não sem antes avivar-me pelo velho edifício aonde, pelas mãos do velho Freichaut, eu haveria de obter a minha primeira licença de condução para velocípedes sem motor. O grau de dificuldade era fazer, com a bicicleta, um oito sem pôr o pé no chão. Habilitei-me à carteira com direito a fotografia e tudo. Foi uma festa.
Ao lado do Município e destas lembranças, fica a esquadra principal da cidade e a cadeia. Contíguo a ele, mais ainda, o corredor que é composto pelas celas da primeira que dão para o quintal do Conselho e que tem um pequeno vão de entrada, com um banco de cimento, logo ali aonde uma velha árvore se ergue em sua antiquíssima idade. Desta, lembro-me sempre de um episódio triste e que me marcou bastante. Em 77, penso, durante o campeonato provincial de futebol, jogavam o Palmeiras e o Ferroviário de Quelimane no campo da primeira equipa. Partida importante e que incendiava os ânimos da pequena cidade. Portanto, quase todo o mundo aficionado do futebol estava lá. Lembro-me de os meus amigos e, entre eles, o meu irmão, decidirem que ao invés da matiné,naquele Domingo, no cinema Estúdio, compraríamos uns macitos de cigarros e tentar-se-ia, como alternativa, ver o jogo. Presumimos, na altura, que pudéssemos entrar gratuitamente, pois praticávamos basquete no Desportivo de Quelimane.
Contrariado, porque não gosto de futebol, lá fui entusiasmado por poder ir ver jogar o João Onofre, o Cadango, o Pelé, o Chicoco, o Lobo, enfim, os craques dessa altura. Acontece que chegámos ao campo do Palmeiras e foi-nos barrada a entrada. Barafustámos, chateámos-mos e nos desculpámos por não termos connosco os nossos cartões de desportistas. Mas em vão. A decisão dos porteiros manteve-se. Contrariados, resolvemos fazer o que todo o pessoal da nossa idade fazia naquela altura: Saltar o muro. Todavia, as coisas correram-nos mal e fomos apanhados por um dos guardas do clube. Prontamente fomos encaminhados a um dirigente da Associação de Futebol. Eu e o meu irmão, os irmãos Zé Tó e Carlitos Ruas e o Betinho MotyCarimo. Das mãos e das ordens do senhor Pedro Francisco, que nos conhecia bastante bem, partimos, indignados com a atitude, para as mãos de uns pingos de chuva akalachnikovados e achambocados. Não me esqueço nunca mais desse dia em que, como punição, nos mandaram furar o chão rodopiando em volta dos nossos dedos indicadores. Torturante e humilhante para os putos que éramos e para o grau de culpa que nos fora imputado. Depois daquilo, para a esquadra. Na esquadra, o oficial de serviço que nos conhecia os encarregados de educacao nao no permitiu os contactassemos e ordenou-nos que nos sentassemos, todos, no pequeno banco de cimento, expostos aos transeuntes que passavam e até que o jogo acabasse. Foi a humilhação total. Quelimane inteiro a ver-nos presos na entrada da esquadra. Depois, é claro, as tareias valentes em casa e as proibições longas a que fomos sujeitos. Desse episódio haveria de nascer-me uma raiva grande ao velho Pedro Francisco a quem nunca mais falei até sair de Quelimane. Àsua atitude triste e prepotente e ao facto de nos poder ter mandado para casa com uma repreensão e não o ter feito. Mas, passemos a frente que águas passadas não movem moinhos.
Por esta altura.Vou
pela cidade e noto que, embora tenha crescido o número de pedintes, o lixo nas ruas não é uma característica como em Maputo. Por todo o lado senhoras com vassouras tradicionais vão executando a tarefa de manter a urbe afastada dessa fotografia tão desoladora que é uma cidade suja e desarrumada. Contento-me,pois o fato melhora substancialmente o aspecto degradado que Quelimane tem ainda. A cidade envelheceu, descoloriu-se e ficou com um ar abandalhado. Parece, até, que parou negativamente no tempo. Porém, de tudo isso ela se despe como que por magia. A simpatia dos seus citadinos, o característico respeito que não é só peculiar às pessoas que a habitam, mas, substancialmente, também aquelas que vêm dos seus arredores e de outros distritos da Província, têm uma influência restaurativa na impressão com que ficamos de Quelimane, logo à primeira. Ao mesmo tempo, a cidade respira confiança, esperança e atitude. É fácil de constatar que as pessoas sentem a urbe mais sua na maneira como falam e como se referem a ela. Dizem-me que tem a ver com as recentes eleições autárquicas e de estarem, aos poucos, a ultrapassar o descontentamento generalizado em que viviam. Provavelmente estejam a passar por um processo de regeneração social, aliás, que tem que suceder e não tem como não.
OK! Mas Quelimane é uma terra pequena, tão pequena que estou, num ápice, já sentado no Pica. Um café bar pertencente à senhora esposa do velho Picareta, alentejano de gema e africano branco devolvido pelos portugueses às recônditas paragens daqui, quase na idade da pedra. Comercializador de motorizadas, desde os jurássicos tempos, o emblemático Picareta é o único indígena estrangeiro, como costumo dizer, assimilado e com sotaque alentejano na mobília antiga da urbe. Filósofo, político, conselheiro sexual e matrimonial, poeta e sonhador, benfiquista(?) quelimanense ajuramentado, lá vai ele mantendo-se em forma naquela sua figurita pequena e balanceante.Uns abraços ao velho e ao seu colega de mesa, o senhor Conceição, repousado musungo do JB, e logo um whisky, com uma água de lanho que vai a passar, vem deliciar-me o repouso sobressaltado, de subito, por uma estridente sirene numa Land Cruiser da PRM a abrir caminho, em passo de tartaruga, a uma foure bai foure com um único passageiro retorcido a bordo. Recomposto do susto, pergunto: Algum ferido? Não, não, é o Governador, não te preocupes. Bom, deu-me vontade de rir e quase se ia da boca o lanho e o whisky. De rir de mim, primeiro e do fato, depois. De mim. por nunca ter ouvido a sirene de uma ambulância numa cidade onde se diz que os doentes proliferam, os serviços de saúde são péssimos e, por essa razão, os índices de mortalidade elevados. Pelo facto, depois, por tudo ser perto de tudo, toda a gente conhecer toda a gente e o Governador ser mesmo Sua Excelencia, pessoal e intransmissivelmente. Ora uma gritaria com aquelas proporções quase não se justifica desta maneira. E se a questão é protocolar, só precisaria que as serenatas fossem nas esquinas onde aquela espécie de cortejo, de dois carros, corresse o risco de embater contra qualquer outra viatura movida a gasolina ou a tracção humana. Porém, nisso, Maputo é imbatível, até a altas horas da noite e nas vias em que o tráfego é de todo impossível. Mas, como diz a 2M, a nossa cerveja, a nossa maneira. E lá temos sua Excia, com a cidade toda a ouvir-lhe, em velocidade reduzida, a caminho dos despachos no seu Gabinete e gozando do direito que, sem dúvida nenhuma, lhe confere o cargo mas que dispensaria o bom senso. Acontece que nestas coisas de protocolo nem sempre é como a gente quer e, aí, pode Sua Excia não poder pronunciar-se sobre o que lhe impõe a DSR. São as vaidades do Poder e as grandezas da autoridade. Pouco se pode fazer.
Bem, vejo que, a sucapa, o texto já vai longo e eu preciso de terminá-lo aqui. Para a semana eu prometo retomar o tema desta crónica, restada, felizmente, por ainda nao ter esgotado o que ainda tenho para escrever sobre algumas impressões que a minha terra me deixou. Até lá, aquele afectuoso abraço do
Eduardo White
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2 hours ago
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