Disseram-me, esta manhã, que tinha chegado um barco grande a Matosinhos. De um porto tão distante que os homens só dele sabem de ouvirem falar. Veio munido de entorpecentes luzes, lento e majestoso como uma baleia divagando em seus mares. De dentro, tambores e canticos ecoavam, rufando e seduzindo, enquanto balarinas líquidas, dançando, se embrulhavam em milhentas mil cores sob os pássaros gentios que as acompanhavam.
Havia sol. Estranharam os contadores, pois que não é costume em tempos de tão rígidos frios serem ali solarengas as madrugadas e que nem pássaros se agitem em tão acordados vôos. A nave, continuam eles, era um gigantesco vapôr feito de invulgares materiais. Estrelas do mar, búzios, escamas prateadas de peixes, carapaças de caranguejos, conchas de um ouro luzídio e muitas máscaras de variáveis rostos. Também se viam areias encarnadíssimas de uma fineza só igualável às mais longínquas sedas e madeiras rosa e negra e castanhamente canforizadas e também fortes como o ferro e negras como o bréu.
E haviam, estranhamente, musculados negros vestidos de uma roupagem quase nua, carregando consigo enormes lanças e elmos de pele e escudos de enormes e vivas cabeças de leopardos rosnando. Também, contam-se as mulheres elegantíssimas cujos seios eram da mais perfeita e dura redondez e que os seguiam agitadas entre seus gritos comemorativos.
Dizem que Matosinhos terá acordado atónita com tão invulgar espectáculo. Eram as altíssimas labaredas que ondulavam de inúmeras fogueiras crepitando sobre o mar, as estrelas havidas baixas e amarelas como o sol, como as luzes vastas de uma grande cidade, cintilantes e irrequietas, e, sobre elas, crianças rindo-se com papagaios tocando o azul límpido dos céus.
Em volta do navio, contam-se incontáveis as almadias com os seus pescadores remando e golfinhos saltando, demorada, lentamente em sua volta e que também emitiam envidraçados sons cristalizados por todos os lados em flâmulas e minúsculas bandeiras coloridas, enquanto do seu casco se estendia, até junto à terra, uma enorme passadeira púrpura ladeada por árvores frutadas e perfumadas. Sobre ela caminhava um homem negro e forte que, em meio a sonoras gargalhadas, falava e cantava, palavras e músicas indíziveis, e dos seus cabelos brancos um extenso e distante algodoal se agitava, e das mãos, enormes montanhas verdes de chá enobrecidas o guardavam e da boca, um grande rio trovejando para as duas gigantescas luas negras dos olhos aluando tudo.
Falam as mais variadas vozes que, depois deste espectáculo, do navio se fez ouvir uma estridente sirene, tão forte, tão aguda, tão capaz de fazer tremer as casas dos homens, os prédios da terra, os campos em volta. Com esse som, os cães ladraram e os relógios pararam e o mar se abriu calmo e sereno para engolir aquela visão fantástica. E o silêncio, então, fez sentir-se como uma cortante e sibilante brisa para que a cidade voltasse a dormir de novo.
Apenas mais tarde se soube, de um país haver percorrido o Mundo para embarcar o seu pintador enfeitiçado da vida, que, agora, naquela enorme nave, voltava para vivê-la na consanguinidade moçambicana das suas telas. Desse homem, nosso colorido marinheiro do mundo e de seu nome MALANGATANA, só mesmo elas, justa e merecidamente, poderão falar.
Eduardo White
5 de Janeiro de 2011
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