Friday 28 May 2010

Editorial : “Processo de Nachingwea”

PGR à margem de um crime político e demitida das suas funções

Maputo (Canalmoz) - A notícia de que os familiares dos cidadãos moçambicanos desaparecidos se preparam para criar uma associação (Leia na nossa edição de 25 do corrente, terça-feira) destinada a criar as bases para um processo judicial a ser movido contra o Estado Moçambicano serve para confirmar a precariedade do nosso sistema de Justiça. Há mais de 35 anos, tinha lugar num campo de treino militar da Frelimo, em território tanzaniano, uma espécie de “julgamento” envolvendo cidadãos moçambicanos detidos pela Frelimo à revelia dos tribunais, uns, raptados no estrangeiro, outros, e que depois foram “sentenciados” à “reeducação”, pena não prevista em nenhum Código Penal em vigor em Moçambique. A Frelimo desempenhou em simultâneo, no âmbito desse processo, o papel de acusador e de “juiz”. Os acusados não tiverem direito a defesa legalmente constituída. Esse simulacro de justiça serviu para ilustrar o tipo e qualidade de justiça que estava reservada para os cidadãos moçambicanos na nação soberana prestes a nascer.
O fim trágico a que as vítimas dos julgamentos estalinistas de Nachingwea ficaram votadas, a ponto de hoje os familiares dessas mesmas vitimas se sentirem na contingência de terem de formar uma associação para proteger e salvaguardar os seus legítimos interesses, era papel que deveria caber às instituições de Direito moçambicanas, mormente à Procuradoria Geral da República (PGR), mas, como sempre, a tendência partidária tem prevalecido e esta, pura e simplesmente, não age. E, mesmo assim, há quem tenha sempre a distinta lata de pregar, sem se ver ao espelho, que os outros não têm uma postura de Estado.
A realidade crua e nua é que a PGR, ao contrário do que se reza nos seus estatutos, não é uma instituição virada para a defesa dos legítimos interesses dos cidadãos. Acima de tudo, ela protege o partido político que teima em continuar “força dirigente do Estado e da sociedade”.
Que mais será necessário dizer a quem ainda tem dúvidas da partidarização do Estado?
Ao fim de 35 anos de Independência, e perante a declaração pública de destacadas figuras da Frelimo assumindo responsabilidade – orgulhosamente assumida, acrescente-se – pela tragédia de Nachingwea, e as acusações ventiladas nas páginas da comunicação social independente, mencionando nomes, indicando locais, datas e as identidades de figuras responsáveis pelo sucedido no âmbito do que já é conhecido por “Processo de Nachingwea”, a PGR nada fez e continua a fingir que nada disso lhe diz respeito. Por outras palavras, colocou-se à margem de um crime político e demitiu-se das suas funções, permitindo que os autores morais e materiais permaneçam intocáveis. Mais: faz ouvidos de mercador a queixas que lhe foram apresentadas por familiares de cidadãos moçambicanos desaparecidos, forçando esses mesmos familiares a recorrerem a instâncias internacionais de Direito dado que, em Moçambique a Justiça, conforme a própria PGR o confirma pela sua reiterada e comprovada atitude, não funciona, não serve os interesses legítimos dos cidadãos e protege quem lhe convém, violando os seus próprios estatutos e desprestigiando o Estado.
É pois, neste contexto de injustiça, de desprezo pelas normas do Direito, pela vedação do acesso às instâncias de Direito em Moçambique, que está em vias de surgir uma Associação que, ao que se prevê, terá de ir bater à porta, não da PGR, mas de instituições como a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos ou do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, para fazer valer um legítimo direito: o da determinação do paradeiro das pessoas desaparecidas, das circunstâncias do seu desaparecimento, e do apuramento das responsabilidade para, à face da lei, se atribuírem indemnizações justas aos familiares das vítimas.
A PGR colocou-se a ela própria no dilema em que agora se encontra, ao renunciar ao cumprimento do seu dever estatutário. Não poderá, por conseguinte, tentar contornar o caso e muito menos subverter os fins da Justiça, travando, uma vez mais, o acesso das vítimas a instâncias em que possam, efectivamente, ser ouvidas. Como dizem os britânicos, a PGR “cannot have both ways”, o que na nossa língua oficial daria algo como: a Procuradoria Geral da República perdeu a oportunidade de fazer justiça e agora não pode impedir que os prejudicados recorram a quem faça na realidade justiça.

(Canal de Moçambique)

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