Friday, 5 February 2010

A Opiniao de Jorge Oliveira

João Paulo Borges Coelho

CAMPO DE TRÂNSITO



Há coisas que parecem estáticas, mas se as abanarmos ficamos deveras surpreendidos com o que podem proporcionar, pois são verdadeiros depositários das mais curiosas realidades que acompanham o humano ao longo da sua existência. Este Campo, que pode, nalgum momento, parecer um sítio pacato, calmo, imóvel, acaba por ser um monte de surpresas, mostradas nas histórias que cada um dos seus habitantes não conta e, ao mesmo tempo, no que vai sucedendo em cada novo dia duma rotina que não é nada repetitiva.
O complexo não pode só ser difícil. Ainda que a escrita seja um emaranhado, uma complicada teia, deve ter sentido. JPBC escreve de forma lúcida sobre coisas complexas - visíveis, no dia a dia das personagens, e invisíveis, naquilo que elas são mas nunca mostram. Não sabe donde vem, o que faz, fez ou deixou de fazer cada uma delas. Apenas interessa a sua ação dentro do enredo.
“E os registos são como pegadas deixadas no caminho, esquecidas por quem passou. É graças a homens meticulosos como o Director que será possível, mais tarde, escrever sobre o acontecido no Campo de Trânsito. Não há segredo que desafie o tempo”.
Agarrar o leitor não é novidade na literatura. Há, porém, os que agarram sem esforço, são peritos em prender o destinatário. Temos aqui um livro espectacular, dum homem de letras, historiador e um verdadeiro artista da escrita que nos põe a devorar um texto verdadeiramente apaixonante. Só não percebe isso quem não lê; não desfruta disso quem não se dá ao prazer de mergulhar no romance. Um romance, diga-se, sem amor, sem paixão, onde, apesar da beleza do texto, ninguém ama ninguém. Temos tudo de bom, menos sentimento. Um romance sem coração, e esta?
Um indivíduo preso sem saber porquê, sem pelo menos conseguir discutir a sua situação e muito menos os conceitos que estariam subjacentes a esse estado de coisas, que tinha que viver e enfrentar, é o centro de toda a trama. Não consegue, muito embora tente, discutir liberdade, justiça, colectividade vs singular, nem sequer questionar as razões do seu martírio, de lhe terem forçado a aderir a um calvário para ele inexplicável.
“Os mortos não interessariam ao Director, não fazem parte da complexa equação que ele tem que resolver. O resto tão-pouco. Tem pressa em regressar a fim de prestar as suas contas. Inventa um excesso de fidelidade para se resguardar dos caminhos por onde o outro lhe quer levar”.
Até onde pode ir a injustiça? Assola-nos um sentimento de revolta conforme a narrativa se vai desenvolvendo; acredita-se que os homens não podem ser tão cruéis, não se aceita que tenha, em algum momento da história, existido tanta falta de direitos humanos. Mas a vida é assim, os processos vão e voltam, sempre com outras características, sempre com outros contornos. O que temos a fazer é perceber cada momento e adaptarmo-nos a eles, sempre respeitando o outro para que o outro perceba até onde deve ir a sua liberdade ao nosso lado.
O conteúdo deste título não se liga a algum lugar que possamos apontar em concreto. O autor mostra uma capacidade fora do comum de fechar a estória sem contacto com o exterior. Não se sabe se aconteceu no sul, centro ou norte; apenas uma referência recorrente ao frio. Quanto ao resto, nomes vagos, indicações genéricas, cidade, comando, descampado, edifício, aeroporto. Cada um que tire a sua conclusão, mas não nos imponham uma única como se não tivessemos direito a tirar conclusões diferentes, com base no que a conotação do texto nos possibilita.
“A tarde quase se acaba e leva a luz das coisas. O choupo que protegia a aula do sol, agora que todos se foram, é uma mancha solitária. As hortas, longas linhas negras e desabitadas, grandes aranhões na pele da margem do rio”.
Ao longo do texto, perseguem-nos três cores: vermelho, amarelo e verde. As cores do semáforo. O que (estas cores) têm a ver com um tipo que foi preso e atirado para o inferno? Porque intrometê-las no percurso dum indivíduo que enfrenta uma situação sem beleza nem colorido nenhum? É um mistério para ser desmistificado por cada leitor; será que cada cor tem um significado, ou cada uma delas representa algo diferente? Ou, tratando-se de um Campo de Trânsito, associa-se o trânsito da estrada aos semáforos que o regulam?
Não tendo mente, desprovido de qualquer consciência e até sem espírito, o homem agarra-se a pequenos objetos, uma faca, uma colher ou um caderno, tudo muito sem sentido. Existirão limites para a pobreza, ou para a condição de uma pessoa existir como um ser praticamente fora dos mapas, das estatísticas? Se lessem, mais do que bebem, os nossos jovens diriam: é uma obra pesada!
Jorge de Oliveira