Januário Mutaquiha (Tokwene)
Memento homo: O DRAMA DA MORTE
1. É sobejamente sabido que a vida nada mais é senão o resultado da soma da realidade mais a ilusão. JM, Tokwene, fala sobre a vida, a morte, a nossa existência, defendendo, claramente, que vivemos para morrer. Não fosse assim, não existiriam, por exemplo, os órfãos – pessoas que destacou na obra ou através das quais quis provar que a morte não perdoa. E esta?
2. Situou a escrita no período às portas da independência e roçou a guerra dos 16 anos, dando, de imediato, a sensação de que viver é, afinal, uma manta de retalhos; ou, se quisermos, a sobreposição de espaços e períodos ou momentos que moldam o homem ao mesmo tempo que são moldados pelo amplo espetro da humanidade.
3. “Lázaro Ganha Pouco terminava, assim, a sua amargurada peregrinação por este vale de lágrimas com o pescoço enrolado ao volante impiedoso LEYLAND e as duas pernas atiradas lá para atrás do autocarro, debaixo do último banco de passageiros. Apenas os sapatos que trazia calçados naquela manhã e restos de calças rasgadas tinham permitido, mais tarde, confirmar que as duas pernas lhe pertenciam”.
4. O comportamento que se traduz na desconsideração do próximo/semelhante é atacado, nesta estreia deste escritor com potencial e que usa a morte para mostrar que somos todos iguais. Concordo. No entanto, essa de que somos todos iguais tem muito que se lhe diga: É que, no fundo, e por muito que nos custe acreditar, somos todos diferentes. Os homens, mesmo parecidos, são (todos) desiguais. E, tenho a certeza, quando nos convencemos disso, percebendo que cada um deve ficar no seu lugar e respirar o ar a que tem direito, o comboio anda muito mais rápido. Quer dizer, apesar de morrermos todos – isso Tokwene explica bem – ainda deve, creio, vingar a máxima ‘cada macaco no seu galho’.
5. Constrói uma narrativa sem se preocupar com o seu desenrolar, os truques para prender o leitor ou outros aspetos de embelezamento. Procura, a todo custo, e consegue-o, mostrar que a vida só é vida porque existe a morte. Logo, apropria-se do enredo apenas para poder chegar à morte. Daí o facto de não lapidar muito o texto – por que razão o faria, se tudo termina morrendo?
6. “A dor, a tristeza, a desolação, o inconformismo tomaram conta da família toda de Bernardo. Do pai, de um modo particular. O pai não se conformava com a notícia da morte do filho. Investira muito no filho. Esperava muito do filho. Quando parecia a obra concluída, Bernardo partia deixando um vazio que, aos olhos do pai, ninguém podia preencher”.
7. Não sei se se pode concluir que seja uma obra dramática. Provavelmente, cada um tirará as suas conclusões; agora, disso não há dúvidas, estes textos encontram-se carregadíssimos de luto. É um encontro com a morte, deve-se dizer.
8. As temáticas andam em volta, de igual modo, e para não fugir à regra, de viver ou não viver, sentir como a morte dói aos que vivem, o que parece ser um paradoxo, mas não é. A morte dói aos que ficam. Aos falecidos não deve aquecer nem arrefecer. Não sei; só Deus sabe.
9. “A morte custa. Mas, cada morte é uma morte. Cada morte custa por razões próprias. A morte da vovó Arimekaya custou muito pelos sofrimentos que ela causou antes de chegar. Ainda hoje, todos se interrogam incrédulos: Mas, se Deus sabia que vovó Arimekaya tinha mesmo de morrer, precisava ela de sofrer tanto assim?!”.
10. Encontram-se conexões com episódios do nosso meio como um médico salva-vidas, nas zonas mais recônditas deste país, uma personagem presente ao longo da nossa história; um ritual macabro e totalmente assassino em que se metia, junto à urna dos régulos, uma donzela cheia de vida, prática já abandonada, acredito; e os atrasados mentais que, de forma recorrente e ainda hoje, expulsam as cunhadas da casa do marido falecido. Esses energúmenos pegam na senhora e correm-na a pontapé, associando-a ao falecimento do seu irmão, tio ou pai (marido dela), como se as suas próprias irmãs não fossem, um dia, ficar viúvas. Acusam a ex-cunhada de ter assassinado o marido, numa atitude boçal, oportunista e selvagem que todos devíamos combater. Muitas vezes, o irmão de tais ‘animais’ morreu de Sida (por ser irresponsável) e infetou a mulher (agora escorraçada de casa juntamente com seus filhos).
11. O epílogo é bastante forte, pesado. Descreve a perda de um familiar, e envolve a um ritmo rápido, fazendo com que nos recordemos de um momento vivido com muita angústia. Uma obra de conteúdo triste, que se recomenda porque mostra algo que o mais comum dos mortais vive e conhece – embora não goste de o abordar: o facto de a morte fazer parte da vida.
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