Se um marciano aterrissasse hoje no Brasil e se informasse pela Rede Globo e
pelos três jornalões, seria difícil que nosso extra-terrestre escapasse da
conclusão de que o maior filósofo brasileiro se chama Roberto Romano; que
nosso grande cientista político é Bolívar Lamounier; que Marco Antonio Villa
é o cume da historiografia nacional; que nossa maior antropóloga é Yvonne
Maggie, e que o maior especialista em relações raciais é Demétrio Magnoli.
Trata-se de outro monólogo que a mídia nos impõe com graus inauditos de
desfaçatez: a mitologia do especialista convocado para validar as posições
da própria mídia. Curiosamente, são sempre os mesmos.
Se você for acadêmico e quiser espaço na mídia brasileira, o processo é
simples. Basta lançar-se numa cruzada contra as cotas raciais, escrever
platitudes demonstrando que o racismo no Brasil não existe, construir
sofismas que concluam que a política externa do Itamaraty é um desastre,
armar gráficos pseudocientíficos provando que o Bolsa Família inibe a
geração de empregos. Estará garantido o espaço, ainda que, como acadêmico, o
seu histórico na disciplina seja bastante modesto.
Mesmo pessoas bem informadas pensaram, durante os anos 90, que o elogio ao
neoliberalismo, à contenção do gasto público e à sanha privatizadora era uma
unanimidade entre os economistas. Na economia, ao contrário das outras
disciplinas, a mídia possuía um leque mais amplo de especialistas para
avalizar sua ideologia. A força da voz dos especialistas foi considerável e
criou um efeito de manada. Eles falavam em nome da racionalidade, da verdade
científica, da inexorável matemática. A verdade, evidentemente, é que essa
unanimidade jamais existiu. De Maria da Conceição Tavares a Joseph Stiglitz,
uma série de economistas com obra reconhecida no mundo apontou o beco sem
saída das políticas de liquidação do patrimônio público. Chris Harman,
economista britânico de formação marxista, previu o atual colapso do mercado
financeiro na época em que os especialistas da mídia repetiam a mesma
fórmula neoliberal e pontificavam sobre a “morte de Marx”. Foi
ridicularizado como dinossauro e até hoje não ouviu qualquer pedido de
desculpas dos papagaios da cantilena do FMI.
Há uma razão pela qual não uso aspas na palavra especialistas ou nos
títulos dos acadêmicos amestrados da mídia. Villa é historiador mesmo,
Maggie é antropóloga de verdade, o título de filósofo de Roberto Romano foi
conquistado com méritos. Não acho válido usar com eles a desqualificação que
eles usam com os demais. No entanto, o fato indiscutível é que eles não são,
nem de longe, os cumes das suas respectivas disciplinas no Brasil. Sua
visibilidade foi conquistada a partir da própria mídia. Não é um reflexo de
reconhecimento conquistado antes na universidade, a partir do qual os meios
de comunicação os teriam buscado para opinar como autoridades. É um uso
desonesto, feito pela mídia, da autoridade do diploma, convocado para
validar uma opinião definida a priori. É lamentável que um acadêmico, cujo
primeiro compromisso deveria ser com a busca da verdade, se preste a esse
jogo. O prêmio é a visibilidade que a mídia pode emprestar – cada vez menor,
diga-se de passagem. O preço é altíssimo: a perda da credibilidade.
O Brasil possui filósofos reconhecidos mundialmente, mas Roberto Romano não
é um deles. Visite, em qualquer país, um colóquio sobre a obra de Espinosa,
pensador singular do século XVII. É impensável que alguém ali não conheça
Marilena Chauí, saudada nos quatro cantos do planeta pelo seu A Nervura do
Real, obra de 941 páginas, acompanhada de outras 240 páginas de notas, que
revoluciona a compreensão de Espinosa como filósofo da potência e da
liberdade. Uma vez, num congresso, apresentei a um filósofo holandês uma
seleção das coisas ditas sobre Marilena na mídia brasileira, especialmente
na revista Veja. Tive que mostrar arquivos pdf para que o colega não me
acusasse de mentiroso. Ele não conseguia entender como uma especialista
desse quilate, admirada em todo o mundo, pudesse ser chamada de “vagabunda”
pela revista semanal de maior circulação no seu próprio país.
Enquanto isso, Roberto Romano é apresentado como “o filósofo” pelo jornal O
Globo, ao qual dá entrevistas em que acusa o blog da Petrobras de
“terrorismo de Estado”. Terrorismo de Estado! Um blog! Está lá: O Globo, 10
de junho de 2009. Na época, matutei cá com meus botões: o que pensará uma
vítima de terrorismo de Estado real – por exemplo, uma família palestina
expulsa de seu lar, com o filho espancado por soldados israelenses – se lhe
disséssemos que um filósofo qualifica como “terrorismo de Estado” a
inauguração de um blog em que uma empresa pública reproduz as entrevistas
com ela feitas pela mídia? É a esse triste papel que se prestam os
acadêmicos amestrados, em troca de algumas migalhas de visibilidade.
A lambança mais patética aconteceu recentemente. Em artigo na Folha de São
Paulo, Marco Antonio Villa qualificava a política externa do Itamaraty de
“trapalhadas” e chamava Celso Amorim de “líder estudantil” e “cavalo de
troia de bufões latino-americanos”. Poucos dias depois, a respeitadíssima
revista Foreign Policy – que não tem nada de esquerdista – apresentava o que
era, segundo ela, a chave do sucesso da política externa do governo Lula:
Celso Amorim, o “melhor chanceler do mundo”, nas palavras da própria
revista. Nenhum contraponto a Villa jamais foi publicado pela Folha.
Poucos países possuem um acervo acadêmico tão qualificado sobre relações
raciais como o Brasil. Na mídia, os “especialistas” sobre isso – agora sim,
com aspas – são Yvonne Maggie, antropóloga que depois de um único livro
decidiu fazer uma carreira baseada exclusivamente no combate às cotas, e
Demétrio Magnoli, o inacreditável geógrafo que, a partir da inexistência
biológica das raças, conclui que o racismo deve ser algum tipo de miragem
que só existe na cabeça dos negros e dos petistas.
Por isso, caro leitor, ao ver algum veículo de mídia apresentar um
especialista, não deixe de fazer as perguntas indispensáveis: quem é ele?
Qual é o seu cacife na disciplina? Por que está ali? Quais serão os outros
pontos de vista existentes na mesma disciplina? Quantas vezes esses pontos
de vista foram contemplados pelo mesmo veículo? No caso da mídia brasileira,
as respostas a essas perguntas são verdadeiras vergonhas nacionais.
'Just a kid who followed their dreams' - Nadal on career
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Rafael Nadal says he would like to be remembered as "a kid who followed
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