Maputo, 6 de Maio de 2009. Hoje acordei com a melhor disposição possível. São 3:15 da manhã. Durante a noite senti a chuva cair. Os relâmpagos de Deus iluminavam o Céu e a Terra com belos efeitos de luz, e os rugidos do Senhor confirmavam a insignificância do Homem perante tudo o que se situa acima dele. Penso nisso tudo e, uma vez mais, confirmo que tudo o que sei e posso saber, como valores na vida e na sociedade, tem origem na minha infância. De cada vez que um relâmpago rasga os Céus; de cada vez que um trovão faz a terra estremecer; de cada vez que vejo lençóis de água caindo do Céu, vejo-me transportado e transposto para a minha aldeia Natal, que leva o nome, tão forte, de Nzwalo, termo que, na Língua Xithswa, falada na Província de Inhambane, significa peso pesado, sobrecarga! Em sentido figurado, pode também significar pesada responsabilidade.
Maputo, Quarta-Feira, 3 de Junho de 2009:: Notícias
Revejo-me, pequenino, dominando por essas impressionantes forças da natureza, caminhando, fazendo aquele longo percurso, que ligava dois pontos vitais dos meus primeiros 12 anos de vida: de um extremo, a nossa casa, implantada entre cajueiros e coqueiros, e do outro, o Nhantchingue, nome de um afluente do Rio Inhanombe, local aonde iamos buscar, quase todos os dias, esse sagrado liquido, denominado água!
Ao longo de toda a minha infância e adolescência, fui surpreendido por trovoadas, relâmpagos e chuvas torrenciais, enquanto percorria esse longo caminho, com meus irmãos mais velhos e amigos, entre Nzwalo e Nhantchingue, transportando à cabeça cinco litros de água do rio! Era essa, para as capacidades físicas da minha idade, a minha contribuição para o abastecimento de água à nossa familia. E ao ver tanta água caindo do Céu, contra o garrafão de cinco litros que eu transportava à cabeça, sempre me interrogava: quando é que Deus vai parar de brincar assim comigo? E a água, caindo do Céu em catadupas, escorria pelos caminhos arenosos de Nzwalo, escoando-se, inexorável, em direcção ao mar.
Os nossos pais, seguindo hábitos ancestrais, procuravam, por todos os meios ao seu dispor, reter o máximo dessa água, captando-a para adentro de contentores de fabrico caseiro, feitos de argila queimada, os fhuku, ou para garrafões de 20 litros, que tinham trazido vinho reles da Metrópole, para os nativos. A técnica era elementar: a água escorrendo do tronco dos coqueiros era direccionada para adentro do Fhuku, amarrando em torno dos mesmos troncos, feixes de palmas de coqueiro, os njerereto, cuja extremidade era introduzida para adentro dos recipientes, enchendo-os de água.
Com esta água, os meus irmãos mais velhos, os manos Vicente e Damião, podiam gozar, pelo menos, um dia de folga, nas longas caminhadas para Nhantchingue, em busca de água, com a ajuda de um burro, que puxava um barril de vinte litros, denominado m’phongolo. Essa jornada podia durar entre quatro a seis horas, incluindo duas de ida e volta, de Sol a Sol, e as de espera na bicha, à boca da nascente. A esse tempo de espera se chama “Ku rhamela’ mati” . Não tem tradução possível para Português, pois “ku rhamela” transporta consigo sentido de longa e angustiante espera, ansiedade e até mesmo medo de ser surpreendido pela noite, à espera da vez. Ainda hoje vejo, com absoluta nitidez, o mano Vicente, regressando a casa à noite, guiado desde o rio por um luar prateado, sob um céu límpido e povoado de cintilantes estrelas. Vejo o papá recebendo-o; desamarrando o burro; dando-lhe palmadinhas de carinho e de gratidão na cara, e levando-o para junto do seu pasto, entre cajueiros e mafurreiras, na noite prateada de luar. Longos suores, sono e suspiros, até a mamã nos servir o jantar de mathapa e rhale, partilhado num mesmo prato de madeira, de fabrico caseiro, denominado nguelo, entre todos nós, irmãos, primos e nossos amigos de infância. Momentos sagrados de viver e celebrar a família, de aprender a partilhar, de comungar paladares e de dividir, por vezes, a insatisfação do prato magro, em partes iguais...
No silêncio dos dias e das noites, os nossos pais de certeza que também repetiam a minha pergunta, ante o absurdo da sede perante o desperdício da água da chuva, caindo gratuitamente do céu, e escoando-se, impune, para o mar. Até que, um dia, uma luz se fez no fundo do túnel: eles tomaram a decisão histórica: construir uma cisterna, subterrânea, para aonde captar a água da chuva, a partir da nossa casa, que já era de cimento, de duas caídas, com apenas duas divisões: o quarto dos pais e a sala, que servia de nosso quarto, durante a noite!
Durante as duas semanas da construção da cisterna a nossa casa tinha virado o centro de todo o Universo: vizinhos e transeuntes, curiosos, vinham inspeccionar a estranha obra subterrânea, e não escondiam o seu enorme espanto e admiração, ouvindo as explicações do papá, rematadas com a sua inabalável fé cristã:
Depois... é só pedir chuva a Deus...”
Terminada a construção da cisterna, a chuva demorava! Ficávamos com os olhos presos ao Céu, sempre perguntando: “quando é que Deus vai parar de brincar assim connosco?” Mas um dia o “milagre” se deu: choveu! Choveu, choveu, choveu Chuva em Nzwalo!
Com outros meninos da vizinhança e os meus irmãos mais novos, o Chico e o Inácio, fizemo-nos à chuva, pulando, correndo e chapinhando na água que corria para o mar, e cantando, de alegria, a velha canção da chuva, que os netos cantam para os avôs:
- Tcha-tcha! Tcha-tcha vula, kokwa, tchat-tcha! – O Evaristo, caçula de uns três anos de idade, apenas nos podia seguir com o olhar, cheio de inveja, nos braços da mamã.
Das caleiras dependuradas das caídas da nossa casa de quarto e sala, a água da chuva jorrava para adentro da cisterna, e no seu som podiam ouvir-se palmas que Deus batia, aplaudindo os seus filhos, por terem sabido colher da sua sabedoria e fazer pleno uso dos recursos que Ele sempre colocou à sua disposição, com tanto carinho e compaixão. Eu não estava atento à mamã, mas tenho a certeza que nesse dia ela chorou muitas lágrimas e, com o seu marido, rezaram em silêncio, agradecendo a Deus por nos verem a nós, seus filhos mais novos, celebrando, também, o momento da libertação! Estávamos no mês de Maio de 1973!
A partir de então, a vida de toda a aldeia de Nzwalo e de outras aldeias próximas mudou profundamente: qualquer família aprendeu que, com uma poupança mínima, podia celebrar a generosidade de Deus, assegurando acesso a água, pelo menos durante metade do ano: sem casa de cimento, bastariam cinco chapas de zinco pregadas sobre quatro estacadas para encher uma cisterna de três metros cúbicos de água, em poucas horas de boa chuva! E estavam cortados vários séculos de angustia e sofrimento!
Era o segundo marco que os nossos pais deixavam para sempre em Nzwalo. Dez anos antes, em 1963, tinham deixado o primeiro marco, quiçá o mais importante de todos.
Pelas mãos do papá e a partir da nossa casa, um menino de Nzwalo, o mano Mouzinho, tinha logrado atravessar uma barreira até ai intransponível: poder estudar para além da 4ª classe do Ensino Primário! Poder ver no horizonte do seu futuro, algo mais do que esperar pela maioridade a fim de se inscrever na WENELA para ser recrutado para o trabalho migratório nas minas da África do Sul! Ser mughaiza!
Uma grande visão do papá levou-o até horizontes tão longínquos, a partir de uma pacata aldeia do interior de Inhambane: deixar o filho nas mãos dos padres católicos da Missão S. João de Deus de Homoine, pedindo-lhes que o enviassem para o Seminário Católico de Amatongas, para seguir o curso de Sacerdote. Ninguém em Nzwalo imagina, ainda hoje, aonde fica e como se chega a Amatongas, uma localidade do Distrito de Gondola, na Província de Manica! Nesses anos, eram duas semanas de viagem, incluindo percursos de barco, percorrendo a costa, de pequenas e frágeis embarcações, até às costas de Vilanculos, e de lá, de Landrovers, picadas adentro, continuar até Amatongas.
Desde então, muitos outros rapazes de Nzwalo, concluída a 4ª classe, procuraram chegar a esse lugar, então com sabor mítico e místico, apenas conhecido como Amatongas, o mesmo que dizer, ver mais do que os coqueiros e os cajueiros que cercavam as palhotas onde nasceram! Nenhum desses rapazes chegou a ser ordenado padre, mas todos, com a educação obtida no Seminário, puderem olhar para a frente, com perspectivas alternativas à velha rota das minas, através da WENELA, donde, após décadas de sucessivos contratos prolongados nas minas do rand, os seus bisavôs, avôs e pais tinham acabado “reformando-se”, trazendo de volta, em “recompensa”, restos do seu próprio corpo, carcomido por tuberculose óssea!
Passam já quarenta e cinco anos; contudo evocar hoje estes feitos dos meus pais ainda ressoa a um salto enorme nas condições e oportunidades ao dispor de uma pequena aldeia sem nome no mapa, plantada algures no interior de qualquer Pais Africano!
No dia dos meus anos, recordo-me desta travessia de luta e amor, com especial carinho e admiração. Recordo e reconfirmo: tudo quanto sei e posso saber, como valores a exaltar na vida de um homem — a perseverança, o amor, o trabalho árduo e a honestidade — aprendi nesses anos de uma infância de muito amor e carinho, recebido de pais dedicados, que me amaram profundamente e me protegeram de todos os males e vicissitudes de uma vida como a de qualquer família de camponeses africanos de Moçambique: de lágrimas, suores e suspiros.
Por tudo isso, quero dizer-te, querido pai, que recomeço e agradeço o amor, o carinho e o sacrifício com que me criaste e educaste, a mim e a todos os meus irmãos. E apenas te peço que me dês a tua força, a tua visão, e a tua sabedoria, para que eu também possa criar os meus filhos como tu nos criaste a nós todos.Nunca senti tanto a tua falta como hoje. E à medida que os anos passam, mais sinto a tua falta; a falta dos teus sábios conselhos e dos momentos carinhosos em que, ao lado da mamã, me perguntavas: “compreendeste o que te dissemos?”. Ninguém, neste mundo, foi tão pai, como tu.
Com muito amor do teu filho.
Tomas Vieira Mário - Tomas.mario@tvcabo.co.mz
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