Visão de Governador-Geral com Diagnóstico Americano
Em Lourenço Marques, no dia a seguir à morte de Eduardo Mondlane, o representante diplomático norte-americano em Moçambique pede uma audiência com o governador-geral, Baltazar Rebelo de Sousa. Os dois reúnem-se na Ponta Vermelha a 5 de Fevereiro de 1969, para um encontro de 10 minutos, conforme havia sido solicitado por John G. Gosset, cônsul dos Estados Unidos na província ultramarina. A audiência prolongar-se-ia por cerca de ¾ de hora. De regresso ao seu gabinete, o cônsul redige um “Memorando da Conversa” que acabara de travar com Rebelo de Sousa, expedindo-o de seguida para o Departamento de Estado em Washington, D.C. com o timbre de “confidencial”.
Ressalta do memorando de 4 páginas que John Gosset começou por recorrer a artifícios diplomáticos, tentando iludir Rebelo de Sousa de que “o pedido de audiência não se devera a nenhumas instruções do Departamento [de Estado], nem este lhe fizera quaisquer perguntas” sobre a morte de Mondlane, acrescentando que “solicitara a audiência por iniciativa própria”. O governador-geral retribui, e ironiza na resposta que dá ao cônsul americano, dizendo-lhe que os seus “comentários seriam necessariamente pessoais e em estrita confidência, pois o objectivo dos consulados é fundamentalmente comercial”...
O cônsul cita Rebelo de Sousa como lhe tendo dito que as autoridades portuguesas “consideravam os terroristas como uma força viável apenas devido às bases e ao apoio tanzanianos, e à assistência que recebiam de outras potências”. Por conseguinte, “parecia ao governador-geral que a morte de Mondlane teria pouco ou nenhum impacto no desenrolar do terrorismo no norte.”
O cônsul acrescenta que Rebelo de Sousa “discorreu longamente sobre o curso cada vez mais favorável da luta no norte nos últimos meses, tendo dito que de momento as operações estavam na verdade a decorrer bastante bem para os portugueses nos distritos de Cabo Delgado e do Niassa, e ‘até mesmo em Tete onde Mondlane havia ameaçado interferir com Cabora Bassa’”.
No seu informe, John Gosset diz que o governador-geral “acreditava que a eventual derrota da Frelimo já devia ter sido prevista há algum tempo pela maior parte dos dirigentes da Frelimo, incluindo Mondlane; que tanto para a FRELIMO como para os portugueses, a circunstância mais importante que assegurava a eventual derrota do movimento não era a sua cada vez maior debilidade em combate, mas antes a sua incapacidade em alargar ou até mesmo manter níveis anteriores de subversão do povo.” Na opinião de Rebelo de Sousa, “este fracasso era em parte devido à sensatez e ao sucesso do programa português de ‘aldeamentos’, e em parte também à contenção das forças militares portuguesas quanto ao tipo e natureza de actividades contra-subversivas.”
FACTOR MACONDE
Na conversa tida com o cônsul norte-americano, Baltazar Rebelo de Sousa deixa transparecer a ideia de que houve a conivência de sectores da etnia maconde no assassinato de Mondlane. O governador-geral estabelece uma ligação “pertinente” entre a situação militar atrás descrita e a morte de Mondlane, argumentando que “a ajuda concedida à FRELIMO pelos Estados Unidos e outros círculos do Ocidente havia recentemente começado a escassear, e que por altura do 2° Congresso em meados de 1968, Mondlane sentira-se forçado não apenas a atacar os Estados Unidos e o Ocidente de forma ainda mais violenta, mas também a lidar de forma equilibrada e consistente com a China comunista e os russos.” Acrescenta o informe que na maneira de Rebelo de Sousa ver as coisas, “esta situação, a par dos revezes sofridos pela FRELIMO no terreno, havia reduzido de forma acentuada o valor de Mondlane em relação ao movimento, e poderá mesmo ter reduzido a sua influência junto de Nyerere. Por conseguinte”, acrescenta Rebelo de Sousa numa referência a Lázaro Kavandame, “quando um líder maconde foi recentemente demitido por Mondlane, os macondes provavelmente sentiram que este poderia ser dispensado e que havia chegada a altura de o eliminar.”
No decurso da audiência, Baltazar Rebelo de Sousa volta a insistir no factor maconde como acessório da morte de Eduardo Mondlane, deixando escapar, porventura inadvertidamente, pormenores que apontavam para a hipótese de um conluio entre portugueses e macondes, e comprovavam o envolvimento do regime colonial no assassinato. O governador-geral manifesta-se “intrigado pelo facto dos primeiros despachos da Reuters dizerem que Mondlane havia sido morto por tiro de espingarda”. Salienta o cônsul, voltando a citar Rebelo de Sousa: “Ele disse que ‘os portugueses’ (provavelmente querendo dizer os seus próprios homens da polícia secreta local) achavam que o uso de uma bomba armadilhada seria muito mais típico dos macondes do que um assassinato por tiro de espingarda.”
São hoje bem conhecidas as dissidências que abalaram a FRELIMO pouco antes da morte de Eduardo Mondlane. Outros documentos do Departamento de Estado recentemente divulgados revelam que à semelhança de Rebelo de Sousa, a Polícia de Investigação Criminal (CID) da Tanzânia, nas investigações sobre o assassinato do líder da Frelimo, passaria a centrar as suas atenções no elemento maconde. No momento em que a CID tanzaniana se preparava para interrogar Lázaro Kavandame em Mtwara, no sul da Tanzânia, este atravessava a fronteira, entregando-se aos portugueses cerca de um mês após a morte de Eduardo Mondlane. No entanto, de acordo com esses documentos, a CID tanzaniana consegue apurar que os elementos macondes dissidentes da FRELIMO, que já em Maio de 1968 haviam assaltado a sede do movimento em Dar-es -Salam no intuito de assassinar Eduardo Mondlane, contavam com fortes apoios no seio da TANU, partido no poder na Tanzânia. A CID tanzaniana sentiu-se impotente para actuar em Mtwara, pois o comandante da polícia local, por sinal maconde, ausentara-se para Lindi quando soube da iminente chegada do inspector da Polícia de Investigação Criminal, proveniente de Dar-es-Salam. Os mesmos documentos referem que os dissidentes da FRELIMO gozavam ainda do apoio do chairman regional da TANU em Mtwara, M. Kalimaga, do comissário tanzaniano para a Região Costeira, Mustafa Songambele, ambos da etnia maconde. A nível central, os apoios dos dissidentes da FRELIMO chegavam até ao gabinete do segundo vice-presidente tanzaniano, Lawi Sijaona. Num despacho “confidencial” expedido a 24 de Fevereiro de 1969 pela Embaixada Americana em Adis Abeba para o Departamento de Estado, Sijaona é citado como tendo dito a Mondlane que “o governo tanzaniano não mais poderia garantir a sua segurança”. A velha ambição de um “Grande Tanganyika” nutrida pelos macondes a norte do Rovuma e abrangendo os irmãos a sul, não havia ainda sido abandonada.
Este envolvimento de elementos tanzanianos num assassinato planeado pelo regime colonial e que contou com o apoio de círculos dissidentes da FRELIMO constitui, sem dúvida, um embaraço para a Tanzânia. Terá sido certamente por isso que até hoje nunca foram divulgados todos os dados sobre a morte do primeiro presidente da FRELIMO, constantes de relatórios elaborados pela Missão de Formação Militar Canadiana na Tanzânia, a Interpol, a Scotland Yard e a própria CID tanzaniana. O comprometimento tanzaniano na morte de Eduardo Mondlane, e o silêncio daí resultante, tem permitido que sucessivas direcções da Frelimo, por tradição avessas ao rigor da História, contem as coisas à sua maneira, para assim justificar campanhas de descrédito ou legitimar medidas radicais posteriormente postas em prática.
DIAGNÓSTICO DO CÔNSUL
No seu informe enviado ao Departamento de Estado, o Cônsul John Gosset inclui comentários quanto à forma como decorreu a audiência com o governador-geral, os maneirismos de Rebelo de Sousa, a forma como se comportara e os sinais que deixou transparecer. Diz Gosset que “não houve nada particularmente novo ou surpreendente em tudo quanto o governador-geral disse, excepto talvez o tempo que levou a discutir as coisas e a falta, ou de franqueza ou de percepção. Havia-lhe pedido uma audiência de dez minutos e ele falou durante quase 40 minutos.” Acrescenta o cônsul americano: “Muito mais interessante do que o governador-geral tinha a dizer foi a maneira como ele o disse. Como político experiente, em todas as ocasiões anteriores em que o vi em público ou em privado ele havia mantido a compostura, era fluente, persuasivo e eficaz.” De acordo com o cônsul, Rebelo de Sousa “adoptara sempre uma posição completamente salazarista relativamente à política de Portugal, e eu esperava que independentemente do que ele havia dito, houvesse pelo menos um ligeiro ar de complacência e de satisfação pela morte de um velho inimigo. Pelo contrário, ele estava nervoso e não se sentia à vontade, e por vezes tinha dificuldades em se expressar. Pela primeira vez, notei uma contracção muscular ocasional na parte superior do olho esquerdo do governador, os lábios secos e com uma expressão um pouco cansada. Ao despedir-se foi, como sempre, cordial.”
OPINIÃO DE SAMORA MACHEL: “O BALTAZAR NÃO ERA FASCISTA”
Na recente estada privada de cinco dias em Maputo, o ex-governador não passou despercebido. Foi o reencontro com velhas amizades. Quer cidadãos anónimos que o interpelavam na rua ou no hotel para o cumprimentar, quer dirigentes que lhe prestaram uma simbólica e discreta homenagem na Assembleia da República de Moçambique.
Rebelo de Sousa nota que muita coisa mudou com os acordos de paz assinados em Outubro de 1992 em Roma. Na memória do ex-governador fica o registo de gratidão para com o primeiro Presidente da República de Moçambique, Samora Machel: «Era um grande homem. Tratou-me sempre bem.»
Embora nunca tenha tido a oportunidade de conhecer pessoalmente Samora Machel, o ex-governador lembra que o seu nome, dado a uma rua da Matola, arredores de Maputo, foi retirado após a independência.
«Eu era classificado como um grande fascista e colonialista e outras coisas mais. Mas Samora fez questão de que fosse novamente reposta na rua a placa com o meu nome.»
Outra atitude de Samora Machel, que o marcou profundamente, ocorreu num comício em Maputo, após a independência.
Nesse comício, os responsáveis pela administração colonial estavam a ser severamente criticados, mas o então Presidente da República de Moçambique interrompeu um dos oradores: «Alto. O Baltazar não era fascista.»
O ex-governador teve conhecimento da posição de Machel através do seu amigo Alçada Baptista quando este o visitou no Brasil para onde fora após o 25 de Abril (e onde viveu 18 anos).
Na Assembleia da República, o ex-governador viveu um dos momentos políticos mais importantes da sua visita. O presidente da AR apresentou-o como «um velho amigo» aos dirigentes parlamentares, e o primeiro-ministro, Pascoal Mocumbi, fez igualmente questão de cumprimentar o casal. (in Expresso)
ZAMBEZE - 29.01.2009
Memorando da entrevista de Marcelo Rebelo de Sousa ao Consul dos EUA em Lourenço Marques:
Veja em: Download StateDepartmentmemorandomondlane
ZAMBEZE - 29.01.2009
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