Wednesday, 3 December 2008

A Opiniao de Antonio Francisco

IESE - Instituto de Estudos Sociais e Económicos; Maputo , 02 de Dezembro de 2008 Boletim Nº6 Informação sobre Desenvolvimento, Instituições e Análise Social
Sem Surpresas: Abstenção Continua Maior Força Política na Reserva
em Moçambique… Até Quando?

Em Moçambique, a abstenção política está a converter-se, no domínio da participação cidadã, numa instituição tão poderosa como a informalidade, no domínio das relações económicas e sociais: refúgio para sobrevivência política; seguro e fonte de alargamento de oportunidades; contra-poder à exclusão imposta pela formalidade
e legalidade instituídas; fonte de inspiração de uma auto-estima digna, franca e não fingida.¹
Para inquietação de muitos líderes políticos, académicos e analistas, depois da massiva afluência às urnas em 1994 (87%), a abstenção converteu-se, nas eleições subsequentes, numa instituição politicamente cada vez mais relevante e temida. Em 1999, aumentou para 31%; em 2004 atingiu 64%. A nível autárquico, o défice de
descentralização democrática é ainda pior. Nas duas primeiras eleições a abstenção voluntária rondou os 85%, em 1989, e 76%, em 2003)(EISA, 2008, http://www.eisa.org.za/WEP/mozelectarchive.htm; Brito et al., 2005; http://
www.eisa.org.za/PDF/moz04fv.pdf).
Mas pior do que a abstenção voluntária é a abstenção imposta à maioria do eleitorado nos 128 distritos do País. Isto tem a ver com a opção pelo gradualismo, assunto que deveria merecer um tratamento próprio. Aqui, apenas vale a pena expressar surpresa pela complacência dos analistas sobre esta matéria.
As 43 autarquias com direito a escolher seus dirigentes locais abrangem 25% do eleitorado nacional (2,6 milhões em 2008 de eleitores registados).
Ou seja, 6,5 milhões dos 9 milhões de eleitores registados são politicamente privados
do direito de escolha dos seus dirigentes locais.
A desculpa das lideranças no sistema é de que faltam recursos.
Será que não choca e ofende a inteligência do cidadão comum, quando reparamos que ao ritmo a que o gradualismo está a ser implementado - 10 autarquias por década - serão precisos mais de 100 anos para completar a municipalização e acabar com este tipo de exclusão política? Esta discriminação é mais do que assimetria regional; é uma violenta exclusão política imposta a 75% do eleitorado nacional, predominantemente rural.
Outros exemplos nocivos à participação cidadã, fortes fomentadores de abstenção, voluntária ou forçada, merecem ser discutidos; mas não nesta nota.² A importante questão a reter, até aqui, é o facto da abstenção política se ter convertido em
Moçambique, por força das circunstâncias e também da natureza e forma do sistema vigente, numa instituição política latente, com enorme potencial positivo e negativo.
QUEM TEM MEDO DA ABSTENÇÃO E DO PODER LOCAL?
Investigadores e analistas diversos defendem que a consolidação da democracia é impossível sem descentralização. Elísio Macamo, no seu livro de 2006 Um País Cheio de Soluções, defende: “Temos de ter coragem de arriscar mais democracia”. Infelizmente, na prática confrontamo-nos frequentemente com o oposto; tentativas
de riscar, em vez de arriscar, mais democracia.
Isto acontece na Frelimo, na Renamo e noutras organizações públicas.
Analistas e profissionais da política aguardam, com ansiedade, os resultados finais da 3ª eleição autárquica, realizada em 19 de Novembro passado.
Esta espera tem um mérito duplo: reflecte a consciência que a falta de dados observáveis fidedignos pode gerar erros grosseiros; sugere também uma boa compreensão do significado que o dossier das eleições autárquicas terá para
a boa ou má imagem e avaliação, sobre a aposta das lideranças moçambicanas na democratização e descentralização. Tais lideranças estão à prova. Vamos ver se passam o teste e com que classificação.
Entretanto, a partir dos apuramentos intermédios, a generalidade dos candidatos municipais já assumiu sua derrota ou sua vitória. De igual modo, se a abstenção fosse reconhecida como uma das forças políticas formalmente concorrentes,
também já deveria ter assumido sua vitória.
Não precisa de esperar pelos resultados finais.
Um facto parece evidente. Mesmo se a abstenção, nas últimas eleições autárquicas, se aproximar mais dos 50% do que nas eleições anteriores, o seu peso e significado continuam incontestáveis.
Isto sem entrar na problemática (é cedo para ajuizar) sobre a proporção da participação realmente voluntária e a que resultou de manipulação e coacção.³
A abstenção representa actualmente a principal ameaça, tanto para o partido no poder como para os partidos na oposição. Seja ela consciente ou inconsciente, a abstenção reflecte desilusão, fadiga e negação de voto positivo, não apenas a um ou a outro partido, mas ao sistema todo. Aliás, no próprio sistema, os que consideram a democratização um risco inaceitável, também engrossam a abstenção.
Nas recentes eleições autárquicas, pediu-se e suplicou-se o voto. Até em imprensa independente não se poupou a apelos efusivos, como o seguinte: “Votar é governar!” (Magazine Independente, 19.11.08, p. 07). Se votar é governar, como exigir responsabilidade pela desgovernação, no sentido de má ou péssima governação?
Numa situação em que as alternativas parecem piores do que a “posição”, como votar negativamente sem converter o voto positivo num voto inválido?
A resposta a estas questões é simples: votar na abstenção. Votos em branco e nulos são politicamente inválidos, mas votos na abstenção não.
Em muitos casos são afirmações negativas de dignidade, em que o nosso dedo fica limpo, transparente e não comprometido.
Na falta de melhor, a população tem optado por se acantonar massivamente na abstenção. Pouco lhe importa as acusações de falta de patriotismo, fraca consciência e falta de sentido cívico. A manipulação política é esperta, mas o povo também sabe aprender a não ser parvo.
Moçambique não tem cultura de voto em branco, mas está a desenvolver uma cultura de abstenção positiva e resistente. Existe aqui uma grande ironia. Muitos dos críticos da abstenção aprenderam, no tempo colonial, a contrariar a ideia vulgar
de que quem cala consente. Aprenderam a sobreviver calando-se, mas sem consentirem o
estado de coisas.
Todavia, em vez de mais argumentos em torno da questão da abstenção, esta nota oferece um convite à meditação sobre alguns factos, para além das amarras analíticas do modelo convencional de avaliação eleitoral prevalecente.
Na impossibilidade de se entrar em detalhes, em apenas duas páginas, algumas das questões são aqui enunciadas, para reflexão noutros círculos e oportunidades: 1) Qual é afinal a maioria do Presidente da República, ou a nível autárquico dos Presidentes Municipais? 2) Até onde vai a legitimidade da legalidade assente em maiorias minoritárias? 3) Se o Presidente da República, ¹ Instituição no sentido de regras de jogo prevalecentes, no quadro de relações e processos determinantes. Mais sobre a informalidade Francisco, 2006, nas eleições de 2004, conseguiu apenas 22%, no que aqui se designa por voto popular, como entender que a nível oficial tenha uma vitória de 64%? 4) O elogio à abstenção é uma investida na anarquia ou outra forma de afirmar cidadania? 5)Qual a maior virtude e o maior defeito das eleições
autárquicas em Moçambique? 6) Qual o papel da abstenção na participação cidadã?
Por limitações de espaço, esta nota centra-se apenas nas três primeiras interrogações.5 VOTAÇÃO POSITIVA E VOTAÇÃO NEGATIVA: VOTO OFICIAL E VOTO POPULAR
A abstenção não é uma força política formalizada e com assento parlamentar. Mas é uma força política na reserva e acantonada, tal como grande parte da força de trabalho é uma força produtiva informalizada pelo sistema económico vigente.
O significado político da abstenção poderá ser melhor entendido se o seu peso for devidamente incorporado na análise sobre a participação eleitoral.
Para melhor se entender este ponto, vale a pena distinguir dois conceitos operacionais aqui designados como “voto oficial” e o “voto popular”.
Voto oficial corresponde, segundo o estipulado na lei, aos votos chamados válidos; excluiu votos inválidos, em branco e nulos, bem como a abstenção.
4 Já o voto popular abrange o universo eleitoral todo, incluindo: votos válidos, votos inválidos e abstenção.
AFINAL, ONDE ESTÁ E O QUE SIGNIFICA MAIORIA?
Do ponto de vista formal e legal, o actual Presidente da República conquistou nas eleições de 2004, cerca de 64% (2 milhões) de votos válidos.
Por isso, do ponto de vista legal, venceu e venceu bem. Mas venceu no domínio da formalidade e legalidade, conferida pelo voto oficial.
Como mostra a Figura 1, ao tomar-se em consideração a abstenção, algumas conclusões interessantes podem ser extraídas. Por exemplo, em 2004, o peso da abstenção no voto popular representou 64%. Assim, enquanto o Presidente Guebuza conquistou 22% e o Presidente da Renamo apenas 11%,a abstenção contou com dois terços do voto popular.6
Igual comparação, entre voto oficial e voto popular, pode ser aplicada aos presidentes municipais.
A Figura 2 compara os votos oficiais de David Simango (86%), em Maputo, e os votos de
Deviz Simango (65%), na Beira. Ambos presidentes municipais eleitos conquistaram maiorias minoritárias substanciais. Enquanto Simango de Maputo conquistou 37% de voto popular, Simango da Beira conquistou 34% dos eleitores registados.
7 O que dizer da legitimidade popular destes dois candidatos vencedores, nas duas principais cidades de Moçambique?
PERCENTAGENS IDÊNTICAS, DIMENSÕES DE LEGITIMIDADE DIFERENTES
Deviz Simango, ao concorrer e ganhar como independente, no Município da Beira, conquistou uma vitória histórica e sem precedentes, desde a independência de Moçambique em 1975. Esta vitória, pura e simplesmente, destronou o mito, segundo o qual, nenhum candidato presidencial conseguiria vencer fora de um dos grandes partidos políticos, beligerante no passado, e agora cada vez mais aliados no que na gíria popular já lhe chamam a Frenamo (Frelimo+Renamo).
Os dois Simangos ganharam com maiorias minoritárias.
Do ponto de vista do voto popular, ambos têm défice de legitimidade real e
maioritária, mas com uma grande diferença. Na Beira, a abstenção reduziu para perto de 40%, enquanto em Maputo ultrapassa 50%. Além disso, Simango de Maputo ganhou a
presidência municipal pela mão do maior partido, no poder e com amplo acesso aos recursos públicos. Pelo contrário, Simango da Beira, apesar de controlar o município, conquistou sua vitória, num clima de competição intensa, enfrentando a
Frelimo e a liderança (não as bases!) da Renamo.
MOTIVO PARA APREENSÃO, RAZÃO PARA ESPERANÇA
Por respeito à lei e defesa de uma sociedade equilibrada, transparente e saudável, todos os cidadãos, mesmo os da abstenção, devem o maior respeito aos presidentes eleitos, no domínio formal e legal. O mesmo acontece na economia nacional; os informais devem respeitar o formal e legal; nem que seja um respeito à dimensão da exclusão política de que são vítimas.
Depois da vitória de Deviz Simango, na Beira, os moçambicanos finalmente venceram uma grande barreira psicológica e política. Já podem começar a sonhar realisticamente
com presidentes, a nível nacional ou municipal, realmente da real maioria cidadã.
A partir dos dois conceitos usados aqui – voto oficial e voto popular – é possível ver o país real na política, para além do oficial. Não é que os dados estatísticos oficiais estejam errados. A estatística não mente. Quem mente são as pessoas,
sobretudo se os sistemas favorecem o uso e abuso da estatística para distorcer e ocultar certas realidades.
Quando a realidade política passa a ser dominada pela abstenção, eleitoral e noutras dimensões da vida social, até quando se pode ignorar o significado e peso do poder informal politicamente relevante? Até que o sistema desmorone por si próprio?
SONHAR COM PRESIDENTES DA REAL MAIORIA
A legitimidade oficial de presidentes eleitos por maiorias minoritárias fica em causa quando se divorcia ou rompe com a legitimidade da maioria popular.
O que acontecerá se uma Renamo liberta de Afonso Dhlakama se unir, em torno de um candidato independente, como Deviz Simango na Beira, que mobilize e resgate apoio de todos os quadrantes políticos, incluindo o da força da abstenção na reserva? Moçambique terá um Presidente da verdadeira maioria; maioria real dos moçambicanos, não apenas a oficial maioria minoritária.
Se já é possível sonhar realisticamente com presidentes da real maioria, significa que está em curso uma revolução pacífica, silenciosa mas efectiva. Uma revolução que promete libertar os moçambicanos dos "libertadores" da pátria, tanto os da independência como os da democracia.
Devemos respeito, admiração e carinho para com os "libertadores da pátria". Mas respeito não pode significar ficarmos reféns do passado. A maioria dos moçambicanos necessita e tem saudade do futuro. Um futuro positivo, progressivo, em vez de um passado ressentido e disfarçado de futuro melhor.

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