Monday, 24 November 2008

INTERVENÇÃO DO ESCRITOR DANIEL DA COSTA POR OCASIÃO DO LANÇAMENTO DE “A FLAUTA DO ORIENTE”, EM TETE

Hotel Zambeze, 30 de Outubro de 2008
Enganam-se os que esperam de mim esta noite uma dissertação sobre A Flauta do Oriente. Não tenho bases teóricas para falar sobre flautas nem de notas musicais. Mas, no título do livro, está uma coisa que sempre me fascinou: o Oriente.
O Oriente pode parecer à partida uma ideia muito distante.
Mas na verdade, não é. Por vezes, até acho que todos nós transportamos dentro de nós uma costela do Oriente.
Já me explico.
Moçambique, por exemplo, é um nome de raiz árabe. Mesmo a nossa cidadania foi construída aos tiros e tem fundações orientais. Eram de fabrico chinês as armas com as quais os nacionalistas iniciaram a luta armada em 1964.
Pela janela do Oriente já tinham entrado antes muitas coisas úteis à vida, à nossa segurança e conforto: o vidro, a pólvora, a porcelana, a seda. O navegador Vasco da Gama não escalou Inhambane por morrer de amores por nós. Ele ia a caminho da
India à busca de especiarias e precisava de reaprovisionar os seus navios com água e mantimentos frescos.
Foi do Oriente que vieram a bússola, a acupunctura, as missangas e a milenar ciência dos xaropes.
Nos tempos de crise, de lá também veio o petróleo com a chancela de amizade. Muitos anos depois, o nosso amigo do Oriente acabou na forca e nós não conseguimos sequer enviar uma simples nota de condolências. Para as nossas elites, ainda hoje é
tabu pronunciar o nome de Saddam Hussein. Mas as histórias de amizade não se deviam apagar com a borracha da hipocrisia.
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Felizmente, o Oriente não cabe todo numa forca. O Oriente tem sabido guardar ensinamentos milenares sobre a vida e sobre a arte de amar o próximo. De lá foram trazidas as grandes religiões – o budismo, o cristianismo, o islamismo, etc. Para a felicidade dos amantes, de lá também veio o Kama Sutra, uma filosofia que as
pessoas resumem a marca de preservativo ou umas tantas posições sexuais para o ano todo.
Mas a nossa relação com o Oriente não está só embrulhada com incompreensões. Creio por vezes que também está rodeada de injustiça. De um modo geral, a nossa memória colectiva não tem sido justa para com as contribuições do Oriente.
Durante muito tempo, deixámo-nos embriagar pela euforia das maiorias. Não soubemos respeitar a vida, a liberdade e a propriedade.
Mas as maiorias não precisam necessariamente de cair na demagogia. Para se afirmarem, não precisam de roçar o populismo barato. Para sermos uma maioria de qualidade, tem-nos faltado por vezes a nobreza de respeitar as minorias. Tem-nos faltado o tacto da elegância e o cultivo do respeito pela diferença.
A sabedoria antiga diz-nos, aliás, que há uma coisa que difere os grandes homens dos pequenos. Os grandes homens sabem ser pequenos. Só os homens pequenos é que insistem em dar o espectáculo de quererem ser grandes a todo o custo e a toda a hora
– os pequenos e os tolos.
Como nação, corremos o risco ser sermos vistos como tolos na esteira da nossa toada quase sempre megalómana. Aos olhos do mundo, parecemos ter a propensão para esmagar os pequenos, para atropelar os pequenos, para aniquilar os pequenos, ignorando a sua
história, as suas peculiaridades, as suas tradições, ferindo susceptibilidades.
No passado, não havia aviões, telemóveis nem internet. Mas já fomos mais abertos, mais tolerantes, mais inclusivos.
Do Oriente, chegaram até nós muitas famílias à busca de prosperidade e souberam ganhar a sua vida com modéstia. Há nomes aos quais os naturais de Tete não podem ficar indiferentes.
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Quem não conhece a família Gande, Bega, Tulcidás, Karamchande ou Catogo? Tanto quanto eu saiba, são ícones de referência no desenvolvimento comercial da região.
A História destas famílias merecia outro tratamento para escaparem à erosão do tempo. Temos a obrigação de investir na memória dos netos dos nossos netos.
Mas não é só com linhas de comércio que se escreve a História da nossa região. Bonga, por exemplo, foi uma das figuras que se opôs, com bravura, à presença colonial portuguesa. Pelas suas façanhas, ele constituía um terror para os invasores europeus e foi tratado como herói pelos naturais da zona.
E Bonga não era preto. Tinha ascendência goesa. O explorador Livingstone, a caminho da então Niassalândia, chegou a dizer que se tinha cruzado por estas bandas com um branco esquisito que de branco só tinha a cor da pele.
Esta contribuição do Oriente não tem nome de rua ou de escola pública no Município de Tete. Se calhar, tinha de matar mais alguns ocupantes. Mas não sei se esta pérola da História também vai escapar à erosão do tempo.
Isto porque, é demasiada a arrogância histórica que prevalece nem alguns centros de decisão. Se não conseguirmos olhar para Moçambique como uma zona de confluência de civilizações estamos perdidos como nação. Somos um repositório de culturas
diversas.
Antropologicamente, somos ricos. Temos uma costela bantu - maioritária, uma costela europeia e uma costela asiática. A nossa sociedade reflecte essa base de formas diversas. Tentar apagar com borracha esse legado é um investimento infeliz.
As minorias não se revêem nos nossos serviços públicos, nos nossos manuais escolares, nos rituais da nossa terra. Simplesmente, não têm espaço. Mas, ao almoço, muita gente se interroga: onde está o piripiri?
Agora pergunto eu: quando será que o nosso nível de diálogo vai ultrapassar o piripiri, o chá e algumas chamussas? Quando é que vamos ultrapassar o prato de apas e o cofió?

Benga, por exemplo, teve um ancoradouro bastante movimentado. Não estará escondida na esquecida linha férrea de Benga alguma surpresa do Oriente? Se calhar são muitas perguntas para uma só noite. Sei que a exportação de madeira, por exemplo, tem uma alavanca oriental.
Há polémica à volta desse comércio.
Mas é chegada a altura de nos reconciliarmos com o Oriente e a sua História, no país e no nosso Município. E ao reescrevermos essas páginas do passado, há que ter em atenção este detalhe: sempre é possível perceber a qualidade das maiorias pela forma
como elas tratam as suas minorias, pela forma como as integram ou como as excluem, pela forma como as contribuições das minorias são imortalizadas ou abandonadas ao capricho do tempo.
Hoje quis falar do Oriente, mas haverá certamente outras ocasiões tratarmos o Ocidente. A ponte sobre o rio Zambeze, quem a construiu? A Missão de Boroma, quem a concebeu?
Há silêncios que nos deviam envergonhar como cidadãos desta urbe. E reparem que ainda estou no campo das minorias. Não galguei ainda pelas avenidas maioritárias, onde, para mim, a conversa deverá logo começar com o nome do músico Lázaro
Vinho.
Se o país é nosso, se a cidade é nossa, se o Conselho Municipal é nosso, se César de Carvalho também é nosso, porque que é que até hoje o músico Lázaro Vinho não é nosso?
Mas, enfim, hoje não estamos para navegar em plataformas bantu nem em qualquer outra plataforma que não a oriental. Isto, porque, no início, prometi que a minha dissertação seria sobre o Oriente e a isso que me devo cingir.
Muito obrigado.

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