Do mocambiqueonline recebi um email com um discurso do Ministro de Estado das Relacoes Exteriores do Brasil, que pela importancia achei interessante partilhar.
Ministro de Estado das Relações Exteriores
Brasília, Palácio Itamaraty, 17/06/2008
Discurso do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na cerimônia de abertura da Conferência da América Latina e do Caribe Preparatória à Conferência de Revisão de Durban contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas
Senhor Edson Santos, Secretário Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Senhor Paulo Vanucchi, Secretário Especial de Direitos Humanos, Senhor Representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Ngonlardje Mbaidjol Senhora Carmen Rosa Villa, Representante Regional do Alto Comissário, Senhor José Dougan-Beaca, Secretário da Conferência, Senhora Kim Bolduc, Coordenadora- Residente do PNUD e Representante da ONU no Brasil, Representantes da ONU, Chefes de Delegação, Embaixadores e Embaixadoras, Amigos,
É com grande e genuína satisfação que dou as boas vindas e agradeço a presença das delegações que participam desta Conferência da América Latina e do Caribe Preparatória para a Conferência de Revisão de Durban. Nos foros multilaterais, somos constantemente chamados a defender causas que exigem de nós muita perseverança. O combate à discriminação é uma delas. Apesar do compromisso dos países com a eliminação do racismo, nossas sociedades continuam a testemunhar os flagelos causados pelo preconceito contra negros, mulheres, indígenas, migrantes e tantos outros grupos. Ainda há poucos dias, o Presidente Lula, em uma conferência sobre um desses grupos discriminados, referia-se à natureza insidiosa do preconceito. Essa natureza tem por característica o fato de esconder-se de si própria. A verdadeira democracia é incompatível com a discriminação. Não se pode falar em um sistema político democrático se milhões de pessoas são privadas de seus benefícios e de suas promessas. Não se pode falar em pleno gozo dos direitos humanos se milhões de pessoas, vítimas do preconceito e da intolerância, não têm acesso à saúde e à educação. Aqui no Brasil, durante muito tempo, negávamos a existência do racismo. Acreditávamos, com alguma pretensão, que vivíamos em uma democracia racial. Hoje sabemos que isso não é verdade. Preconceito e discriminação deixaram parcelas de nossas populações – sobretudo negra e indígena – à margem dos benefícios do crescimento econômico. O Governo do Presidente Lula tem um compromisso ético com a promoção da igualdade e o fim de todas as formas de discriminação. Fizemos desse compromisso uma diretriz política e um referencial para o desenvolvimento econômico e social. Criou o Presidente Lula a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Quero saudar a presença entre nós, como já mencionei, dos Ministros de Estado, Secretários Especiais, para duas dessas pastas. Quero também fazer uma homenagem, além dos presentes e da minha querida amiga Nilcéia Freire – que não está aqui conosco hoje, Ministra para Assuntos da Mulher – uma homenagem a Matilde Ribeiro, que comigo trabalhou em muitas e difíceis lutas para diminuir a dimensão do racismo não só na política interna, mas na própria política internacional do Brasil. A preocupação com os direitos das mulheres e com a promoção da igualdade racial permeia, de maneira transversal, todas as nossas políticas públicas. Estamos implementando programas de ação afirmativa para promover a realização equitativa dos direitos humanos. Também estamos empenhados em dar efetiva aplicação a leis e políticas que busquem superar a discriminação, mesmo em suas formas mais sutis. Essa preocupação está refletida na atuação do Governo brasileiro no plano externo. Na Organização dos Estados Americanos, o Brasil foi autor do Projeto de Convenção Interamericana contra o Racismo e Toda Forma de Discriminação e Intolerância. O Brasil também preside o Grupo de Trabalho encarregado de negociar esse Projeto. A Convenção Interamericana busca aprofundar as medidas de promoção da igualdade racial e ampliar o escopo de proteção contra todas as formas de discriminação e intolerância. Faço aqui um apelo aos países da região para que possamos concluir, o mais breve possível, as negociações deste instrumento internacional. Essa Convenção contribuirá significativamente para a promoção e a proteção dos direitos humanos nas Américas. Se há uma área em que a OEA tem sido pioneira, tem sido justamente na questão da afirmação dos direitos humanos. Ocorreu com a Convenção dos Direitos da Mulher, ocorreu com várias outras. É muito importante que isso ocorra, também, na área da discriminação racial. Ainda no contexto interamericano, acaba de ser aprovado pela Assembléia-Geral da OEA, por iniciativa do Brasil, o projeto de resolução “Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero”. Trata-se de um instrumento também pioneiro – no âmbito multilateral – para o combate às violações de direitos humanos motivadas pela orientação sexual e pela identidade de gênero. Em 2006, sediamos no Brasil duas importantes conferências que discutiram a eliminação do racismo, entre outros temas. Uma delas foi a Conferência Regional das Américas sobre Avanços e Desafios no Plano de Ação contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas, aqui em Brasília. Atendendo a antiga reivindicação dos movimentos sociais, demos à sociedade civil espaço igual ao concedido aos Governos, algo inovador nesse gênero de conferências. A outra foi a II Conferência dos Intelectuais da África e da Diáspora (CIAD), realizada em Salvador, que reuniu cerca de 400 estudiosos de renome. Nossas relações com a África, continente de onde vieram milhões de homens e mulheres forçados pelo tráfico de escravos, são uma prioridade da política externa brasileira. O Brasil tem um enorme orgulho da profunda presença africana em nossa sociedade. Somos o país com a segunda maior população negra do mundo. Ao incrementar a cooperação, aumentar os fluxos comerciais e estreitar as relações culturais, estamos resgatando uma dívida histórica e – ao mesmo tempo – criando parcerias mutuamente benéficas com o continente africano. O Brasil é um país multiétnico e multicultural. Abrigamos cerca de 220 povos indígenas, que falam mais de 180 línguas. A influência dos povos indígenas perpassa nossa história, cultura e identidade. A cada momento, tropeçamos em toponímicos ou em palavras de uso corrente que são de origem tupi-guarani ou de outras línguas indígenas. Além de sua inegável contribuição à construção nacional, as sociedades indígenas também possuem uma realidade cultural própria, que encerra um potencial de desenvolvimento diferenciado e merece a proteção e o reconhecimento do Estado. Apesar disso, a história dos povos indígenas tem sido marcada por séculos de discriminação e de violações aos seus direitos. Lutar contra essas violações, promovendo e protegendo os direitos indígenas, deve ser objetivo permanente do Estado brasileiro. Senhoras e Senhores, Há um longo caminho a percorrer até a plena implementação dos compromissos assumidos na Declaração e no Plano de Ação de Durban. Quando a América Latina e o Caribe resolveram avançar no processo de revisão de Durban, não faltaram pessoas a questionar – erroneamente – a pertinência de continuar com um debate marcado por profundas divergências. Os céticos perguntavam: “que resultados deram as outras conferências sobre discriminação racial da ONU?” Minha resposta, como em outras ocasiões, é que a ONU ajuda a formar a consciência do mundo. E não há nada de mais prático do que a consciência do ser humano. E nisso a ONU é absolutamente insubstituível. A ONU é o grande foro universal, onde todos os sistemas de valores estão representados. O ideal das Nações Unidas nos dá força para lutar por um mundo melhor, para mudar nossos países e, quem sabe, mudar também nossas consciências. A realização desta Conferência é uma oportunidade para mostrar ao mundo que podemos fazer a diferença. Para mostrar que na América Latina e no Caribe a diversidade é bem-vinda e que a nossa região tem muito a contribuir para a eliminação do racismo e de todas as formas de discriminação e intolerância. É por meio do diálogo franco e aberto, avesso a posturas arrogantes e pretensiosas, que iremos superar uma herança histórica de pobreza, discriminação e exclusão social. Queria dar duas ou três palavras, a esse respeito, pois é um tema que me diz muito ao coração diretamente. Em outras situações, tive a oportunidade de trabalhar pelos direitos humanos em geral, como sabe meu amigo Paulo Vanucchi, como sabem outros militantes dos direitos humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, a quem faço uma homenagem aqui, muitos outros, José Gregori, mas também especificamente no que diz respeito ao combate ao racismo. Como dizia o Presidente Lula nessa conferência que ele abriu, de gays, lésbicas e outros grupos, o preconceito tem essa característica especial. O preconceito esconde-se de si mesmo. Você não encontrará ninguém que diga que tem preconceito. Como ninguém diz que tem ideologia: ideológicas são as posturas dos outros, as nossas são as corretas, são as críticas, são as baseadas na ciência. Mas o preconceito tem essa natureza. Aqui mesmo no Itamaraty dizia-se que não havia preconceito contra a mulher. No entanto, você ia ver a proporção do número de mulheres que entrava no primeiro nível da carreira e aquela proporção no último nível da carreira e as diferenças eram brutais. Elas ainda existem, mas foram muito diminuídas. O mesmo ocorre em relação a outros tipos de minoria. Portanto, o preconceito é algo que nós todos, de alguma maneira, temos que fazer uma auto-crítica muito profunda. Não é fácil. A minha geração cresceu imbuída, digamos, sobretudo nas classes sociais de que eu fazia parte, de que o Brasil era uma democracia racial. De fato, foi possível talvez, no Brasil, evitar conflitos ou discriminações legais que ocorreram em outros países. Mas obviamente, era uma maneira sutil de manter as diferenças. Como já foi dito outras vezes, somente quando nós tomamos consciência de nossa condição, é que nós temos condição de superar essa situação. Isso ocorre em relação a outras desigualdades, mas ocorre de maneira muito forte em relação ao racismo. Eu queria fazer uma última observação, para ver como essas coisas também se passam em nível mundial, global. Eu tive uma experiência muito forte em relação a esse tema – os colegas que trabalharam comigo se lembrarão – quando eu fui embaixador em Genebra, pela segunda vez, eu propus uma resolução que deveria ser muito simples. É difícil convencer funcionários internacionais – desculpem aqui a referência – e inclusive diplomatas, a fazer coisas simples. E a resolução acabou saindo um pouco mais complicada do que eu desejava. O meu objetivo era uma resolução que dissesse apenas que o racismo é incompatível com a democracia. Depois acabaram colocando outras coisas, citaram outras resoluções, mas a mensagem essencial foi mantida: o racismo é incompatível com a democracia. Essa proposta foi feita creio que 1999, em um ano em que mudanças nem sempre positivas ocorriam em alguns países, até desenvolvidos, e nós tivemos muita dificuldade em aprovar essa resolução, a tal ponto que em determinado momento os delegados brasileiros foram procurados por delegados de alguns países desenvolvidos – não vou mencionar quais – e perguntaram quem nos havia pedido para fazer aquela resolução. Como se o Brasil, e outros países em desenvolvimento, não tivessem direito de levantar questões sobre o tópico dos direitos civis e políticos. Porque essa havia sido nossa grande ousadia. Não que falar sobre racismo fosse proibido – já havia a Convenção e todo processo de preparação a Durban, que já havia começado. Mas a área dos direitos civis e políticos era reservada aos países desenvolvidos. Os países pobres, no máximo, poderiam falar dos direitos sociais, econômicos e culturais, e aí até poderiam falar do racismo, poderiam falar de outras formas de discriminação, mas direitos civis e políticos, dizer que o racismo era incompatível com a democracia, não estava no script. No final, conseguimos aprovar a resolução por consenso, houve uma ou outra declaração de voto ao final, mas foi uma experiência muito interessante, e muitas máscaras caíram naquele momento. Eu queria mais uma vez dar as boas-vindas a essa conferência. Para o Brasil é uma honra poder realizá-la aqui em Brasília. Quero especialmente agradecer a presença no Itamaraty do Ministro Edson Santos, também do Ministro Paulo Vanucchi, com quem temos trabalhado em tantas ocasiões, e a todos os demais, representantes do Alto Comissariado das Nações Unidas, representantes do Secretário-Geral, e dizer da nossa total disposição de estar profundamente engajado nessa luta contra o preconceito e contra a intolerância.
Muito obrigado. |
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