Tuesday, 7 October 2008

A Opinião do Prof. Dr. Luís de Brito (*)


Sobre o Recenseamento Eleitoral

Maputo (Canal de Moçambique) - O recenseamento eleitoral é um dos elementos fundamentais do processo eleitoral. Através do recenseamento eleitoral é constituída a lista dos cidadãos com direito de voto, ou seja dos eleitores, sendo-lhes assim garantido o direito de escolher os seus representantes, que é uma das bases dos regimes democráticos. Do recenseamento eleitoral resulta o registo eleitoral, que congrega todas as informações recolhidas sobre os eleitores, a lista eleitoral, que inclui uma parte da informação do registo (especialmente o nome, o número e o local de registo), e os cadernos eleitorais, que contêm informação relativa aos eleitores de cada mesa de voto e são destinados a serem usados no acto da votação. O recenseamento eleitoral tem várias funções. Ele serve para:
- Assegurar aos cidadãos elegíveis o direito de voto e impedir que os que não têm esse direito o possam exercer;
- Evitar votos múltiplos de um mesmo eleitor;
- Facilitar as operações da votação;
- Ajudar a evitar actos de fraude como, por exemplo, o enchimento ilegal das urnas.

Finalmente, em sistemas de representação proporcional, como é o caso em Moçambique, serve para determinar o número de mandatos por círculo eleitoral. Adicionalmente, quando os dados são devidamente divulgados, o recenseamento eleitoral permite ainda que os partidos e candidatos possam realizar de forma mais eficaz as suas campanhas de mobilização do eleitorado, ou que as organizações da sociedade civil, mas também os próprios órgãos de gestão eleitoral que também têm essa missão, possam preparar melhor as suas intervenções no âmbito da educação eleitoral.

A “intransparência” como modo de gestão eleitoral

O recenseamento eleitoral não escapa à falta de transparência que tem caracterizado os processos eleitorais moçambicanos. De acordo com as críticas feitas, os problemas mais graves do processo eleitoral moçambicanos situam-se na etapa inicial, ou seja do recenseamento, e em particular na fase final, na contagem e apuramento de resultados. É de notar que a questão da necessidade de transparência foi especificamente sublinhada pelo Conselho Constitucional na sua deliberação de validação e proclamação dos resultados eleitorais de 2004. No entanto, essa e outras recomendações do Conselho Constitucional foram praticamente ignoradas na revisão da legislação eleitoral que se seguiu. Assim, embora a lei (9/2007, de 25 de Fevereiro) estabeleça, como é lógico e desejável, que “o recenseamento eleitoral deve corresponder, com actualidade, ao universo eleitoral” (art. 4), ela não estabelece mecanismos adequados de verificação.
A Renamo tem acusado o Secretariado Técnico da Administração Eleitoral (STAE) de não fazer devidamente o recenseamento eleitoral em zonas onde tem grande influência, mas tais acusações graves têm sido ignoradas e nunca foram divulgados os dados que permitiriam concluir sobre a sua justeza ou falta de fundamento. Esta situação, aliada às dificuldades que os grupos de observação nacional têm enfrentado para realizar o seu trabalho, nomeadamente enfrentando recusas ou atraso na emissão de credenciais e obstáculos de diferente tipo no acesso à informação, revela a fraqueza de uma legislação que, à primeira vista, parece oferecer todas as garantias de transparência ao processo, mas que é omissa em relação a alguns pontos cruciais. (1 - Para um conjunto de críticas sobre o processo em curso, ver Boletim do Processo Político Moçambicano, nº 36, 18 de Agosto de 2008, AWEPA/CIP, Maputo.)

Um exemplo de questões que o recenseamento eleitoral suscita

A Tabela 1 (NR.: VSSF a ilustrar este texto) mostra a evolução dos eleitores inscritos nos primeiros 33 municípios e o seu crescimento percentual de 1998 para 2003 e de 1998 para 2008. Conforme se pode observar, o crescimento do eleitorado entre 1998 e 2008 revela variações difíceis de entender. Enquanto alguns municípios aumentam muito a sua população eleitoral (por exemplo, Lichinga e Marromeu duplicam), outros mantêm praticamente a mesma (particularmente, Mocímboa da Praia, Angoche, Monapo, Gurué, Dondo e Maxixe) e um terceiro grupo apresenta percentagens que se aproximam do crescimento demográfico médio. Como explicar estas diferenças? Que relação tem o número de eleitores em cada um destes municípios com a população real com idade de votar? O aumento significativo de eleitores registados é devido a um melhor trabalho dos recenseadores, a uma maior mobilização dos cidadãos (o que é duvidoso em face dos níveis de abstenção observados nas eleições municipais e nas últimas eleições gerais), ou a outros factores? E no caso em que o registo eleitoral apresenta sinais de estagnação haverá motivos de ordem política? Para responder a estas e outras questões que se poderiam colocar a propósito do recenseamento eleitoral, é preciso que toda a informação relevante esteja disponível para análise. Essa é a única forma de contribuir para que a qualidade do recenseamento melhore e para que todos os cidadãos tenham a possibilidade de participar na designação dos seus representantes políticos em condições de efectiva igualdade, de acordo com o que está estabelecido na Constituição e nas leis.

Para uma gestão mais transparente do recenseamento eleitoral

A ausência de disposições práticas claras na legislação que assegurem a transparência no recenseamento eleitoral e a confiança no processo eleitoral deve ser colmatada pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), a quem a lei (8/2007, de 26 de Fevereiro) atribui responsabilidade e competência para “garantir que os recenseamentos e os processos eleitorais, se organizem e se desenvolvam com ética e em condições de plena liberdade, justiça e transparência” (art. 7-1a). Cabe, pois, à Comissão Nacional de Eleições tomar as medidas necessárias para melhorar a qualidade das eleições moçambicanas.
A exigência mínima no que respeita à transparência do recenseamento eleitoral é que este seja feito com a antecedência adequada em relação à data da votação (2 - Um problema recorrente nos processos eleitorais moçambicanos e que foi já apontado pelo Conselho Constitucional como necessitando de solução é a exiguidade, por vezes sobreposição, de prazos e os atrasos, que dificultam o normal desenrolar das operações eleitorais.) e que toda a informação seja aberta e colocada atempadamente à disposição de todos os interessados, nomeadamente partidos e candidatos, mas também cidadãos e organizações da sociedade civil. Dentre as medidas que a CNE pode tomar de imediato, destacam-se:

1. Aprovar e publicar o regulamento de observação eleitoral previsto no artigo 18 da lei do recenseamento eleitoral. A ausência do regulamento tem dificultado o exercício do direito de observação pelas organizações interessadas. Por outro, nele caberia a clarificação de uma série de aspectos relativos aos direitos dos observadores e ao seu acesso à informação e a solução prática de alguns dos pontos que têm contribuído para a falta de transparência do processo.

2. Decidir colocar a lista eleitoral integralmente à disposição dos partidos e observadores. Muitos órgãos de gestão eleitoral dispõem de um website onde divulgam uma grande variedade de materiais relativos às eleições, como a legislação e regulamentos, materiais de educação eleitoral, estudos e resultados de inquéritos, resultados eleitorais e uma grande variedade de dados estatísticos, incluindo dados pormenorizados do recenseamento eleitoral, o que seria desejável também para Moçambique. Mas, independentemente desta publicação, cópias electrónicas da lista eleitoral devem ser facultadas aos interessados para poderem não só dispor da distribuição do eleitorado pelo território, mas também testar e verificar a qualidade do registo, quer se trate de inscrições múltiplas de eleitores, de eleitores recenseados mas que não aparecem nos registos, ou da presença de eleitores fictícios.

3. Decidir com a antecedência necessária sobre o software a ser utilizado pelos órgãos eleitorais e permitir a sua inspecção e verificação. A auditoria dos sistemas informáticos usados no processo eleitoral por especialistas independentes deve ser uma obrigação, assim como a divulgação dos respectivos relatórios. Para além disso, a possibilidade de uma inspecção efectuada por especialistas mandatados pelos partidos e candidatos é também um elemento essencial para proporcionar a confiança necessária ao processo eleitoral. As dificuldades observadas neste capítulo nas eleições de 2004, nomeadamente a detecção tardia de problemas no software de apuramento dos resultados, resultaram em fortes críticas à CNE e ao STAE.
4. Aplicar rigorosamente o princípio segundo o qual o local de recenseamento corresponde ao local de votação. A lei estabelece que tal deve acontecer “sempre que possível” (art. 11-2 da lei do recenseamento eleitoral), o que deixa uma margem que se presta a confusão e troca de cadernos eleitorais no momento da votação e tem resultado em muitos casos reportados de eleitores que se vêm impossibilitados de exercer o seu direito de voto. A CNE pode facilmente corrigir este problema, assim como pode evitar também que a prática corrente de recorrer a brigadas móveis para efectuar o recenseamento em locais com fraca densidade populacional resulte na inflação artificial do número de eleitores pela utilização de um mesmo caderno de recenseamento em diferentes locais, que depois é desmultiplicado em dois ou mais cadernos eleitorais para diferentes mesas de voto, mas que incluem cada um deles os mesmos nomes de eleitores.
Finalmente, deve-se salientar que tanto os Princípios de Gestão, Monitoria e Observação Eleitoral na Região da SADC promovidos pelo Fórum das Comissões Eleitorais da SADC e pelo EISA, adoptados em Novembro de 2003, como os Princípios e Orientações da SADC para Eleições Democráticas, adoptados em Agosto de 2004 pela Cimeira da SADC, estabelecem a necessidade de observar o princípio de não-discriminação dos eleitores e de garantir o livre acesso à lista eleitoral (pontos 4.2 e 4.1, respectivamente).

(*) Luís de Brito, Investigador do Instituto de Estudos Sociais e Económicos – Moçambique

2008-10-07 07:11:00

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